Desde 1960

Visto, lido e ouvido — Um futuro que, infelizmente, chegou

Circe Cunha (interina)
postado em 16/07/2021 06:00 / atualizado em 16/07/2021 08:42
 (crédito: Rogean James Caleffi/Unsplash)
(crédito: Rogean James Caleffi/Unsplash)

Quando decidiu pela mudança da capital, no final dos anos 1950, Juscelino Kubitschek, seguindo os passos de José Bonifácio e, posteriormente da Missão Cruls, não fazia a mínima ideia de que era o interior do país, nomeado Planalto Central, e onde deveria ser fixada a nova capital, era em sua totalidade formado pelo mais delicado e sensível bioma de todo o continente. E, mais ainda, era nessa região que se formavam as principais bacias hidrográficas do país, responsáveis pela maior parte do abastecimento de água do Brasil, e reconhecida, hoje, como Berço das Águas ou caixa d’água do Brasil.

Das oito bacias hidrográficas do país, a região é responsável pelo abastecimento de nada menos do que seis bacias, ou seja, sua importância, num mundo que parece caminhar para a escassez de água, é vital para os brasileiros. Obviamente, naqueles tempos, não havia a discussão de temas ambientais nem, tampouco, preocupação com o fim dos recursos naturais. Eram tempos de otimismo e de apelo exacerbado ao progresso, além de outros temas inerentes daquele período, como o da integração nacional, capaz de reduzir as desigualdades regionais que, naquela ocasião, era o grande gargalo a impedir o desenvolvimento do país continental.

Por outro lado, havia ainda a questão de segurança da sede administrativa do país, que seria amenizada com o afastamento do litoral. Nesse quesito, contava ainda a importância que traria para todos o estabelecimento de uma capital num ponto equidistante em relação ao país. Em suma, eram essas questões que guiavam a decisão que tornou inquestionável a transferência da capital.

No início da segunda metade do século 20, a ecologia e as preocupações com o meio ambiente não eram sequer sonhadas. Mesmo que fossem aventadas sua existência naquele ambiente, o apelo pelo progresso era mais intenso e decisivo do que tudo. Hoje, é possível reconhecer que foi justamente graças ao total desconhecimento de questões relativas ao meio ambiente e, mais especificamente, ao Cerrado, considerado hoje como o segundo maior bioma brasileiro em tamanho, sendo também a mais rica savana do mundo em biodiversidade, é que foi possível estabelecer a capital nesta região.

A movimentação de centenas de milhões de metros cúbicos de terra, nos processos de terraplanagem, a abertura de estradas, vias e infinitas obras de infraestrutura para o estabelecimento daquela que seria a mais moderna capital do país, fez desaparecer, num curto espaço de tempo, toda a vegetação que havia nas áreas de construção de Brasília, com o assoreamento de diversos córregos e veios de água e de nascentes.

Com essa “limpeza” do canteiro de obras, muitas espécies de animais, também foram mortas ou rumaram para outras áreas. Comum naquela época era considerar as áreas ocupadas pela vegetação nativa como campos feios e sujos e, por isso mesmo, passíveis de uma limpeza ou substituição daquelas espécies por outras mais vistosas do ponto de vista de um paisagismo artificial e importado de outras regiões.

O avião de Brasília, representado pelo desenho urbano e revolucionário de Lucio Costa, ao pousar no coração do Planalto Central, trouxe para esse sítio, além do progresso que desejavam os políticos e estrategistas daquele período, uma intensa e paulatina interferência em todo o bioma da região, num processo que foi se intensificando ao longo dos anos, conforme era consolidada a nova capital, com a ocupação de áreas sensíveis ecologicamente.

Todo esse processo de ocupação ganhou ainda mais intensidade com o passar dos anos, sendo enormemente acelerado a partir da emancipação política da capital, quando o Distrito Federal foi, de certa forma, abduzido pela esperteza de políticos locais, com a ajuda de empreiteiros gananciosos, formando uma turma que tem cuidado, nas últimas décadas, de dilapidar o restante do patrimônio ecológico do quadrilátero da capital, sob a égide ainda de um progresso que nada mais é do que o avanço perpétuo da poeira.

Toda essa situação ganhou ainda mais impulso com florescimento intenso do agrobusiness que, ao expandir sua produção de monoculturas pelos campos cerrados, literalmente, vem devastando todo o bioma em torno da capital, para a produção de transgênicos destinados à exportação, com largo emprego de pesticidas e outros venenos, muitos deles proibidos no exterior, contaminando o solo e a água desta caixa d’água do país cada vez mais seca.

O que se vê hoje em torno da capital, que se pretendia exemplo para todo o mundo, é a desolação de descampados, com rios de pouca vazão, emoldurados pelo fogo, que nas épocas de seca, tornam essa uma região que arde e que vai sendo coberta pelo pó e pela fumaça, o retrato acabado de um futuro que infelizmente chegou.

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