De muitas formas, esta pandemia será lembrada. Lá no futuro — próximo, eu espero — haverá uma coleção imensa de relatos e uma forte imagética, capaz de registrar, sob todos os pontos de vistas, as partes bonitas (e elas existem, por incrível que pareça) e o imenso legado de dor e tristeza que carregaremos para a posteridade. Ultimamente, duas imagens opostas e diárias conseguem retratar com exatidão os sentimentos opostos que traduzem essa herança.
É a emoção da vida na contramão da morte. Falo do incrível alívio de tomar uma vacina e do escabroso e violento cinismo dos negacionistas.
Tenho ouvido e visto relatos emocionantes de amigos, conhecidos, celebridades, tantas pessoas com a esperança renovada ao tomar uma dose do antídoto capaz de salvar vidas. Lágrimas nos olhos, cartazes de protesto, fotos nas redes sociais e comemorações legítimas ao ter acesso a um direito negado a tantos que tiveram a existência abreviada por esta terrível tragédia sanitária.
Ao mesmo tempo, assistimos estarrecidos a um presidente da República e seus apoiadores desonrarem os mortos e enlutados ao desdenharem das medidas de proteção individual, como o uso da máscara e o distanciamento social. Se uma criança estava de máscara, é porque os pais ou responsáveis assim queriam. O presidente não pode interferir nisso. Retirar a máscara de crianças num evento público é atrair para si o peso irremediável do conluio com a morte. Não há outra forma de falar de um servidor público que não aceita sequer ser questionado por seus atos sem atacar a imprensa, sobretudo mulheres jornalistas.
Vamos continuar perguntando, presidente. É nossa obrigação como jornalistas indagar sobre o direito de a população saber o que aconteceu no processo de compra das vacinas, os motivos da demora, as denúncias levantadas pela CPI da Covid e tudo o mais que seja relevante para o país. E é dever seu responder, e de forma respeitosa. Deixe a covardia de lado e exerça o seu papel com dignidade.
Enquanto grande parte dos brasileiros luta pela sobrevivência, imagens de lideranças desrespeitando o luto e desprezando a ciência são patéticas. A incrível vantagem dessa ambiguidade é que tudo ficará para a história. E aí, talvez, a gente consiga compreender a grandeza do momento que vivemos e extrair lições valiosas para fazer as nossas escolhas.