Dados do observatório suíço The Digital Watch, que se dedica à análise de políticas públicas, revelaram que administrações de 113 países utilizam tecnologia de reconhecimento facial em suas atividades, desde o combate à criminalidade até o controle das fronteiras. Anunciado em 21 de abril, um pioneiro regulamento da Comissão Europeia para a aplicação da inteligência artificial pretende impor duras sanções contra empresas que utilizem tecnologias de vigilância indiscriminada, isto é, aplicada de forma generalizada a todas as pessoas, como o monitoramento e rastreamento em ambientes físicos ou digitais. Na mesa, penalidades que podem chegar a 4% do faturamento anual global de uma organização.
Apesar de admitir que governos de países da União poderão usar aplicações intrusivas por motivos de segurança, o plano europeu faz restrições, como a limitação no tempo, no espaço e a observância aos direitos individuais. O tema, no entanto, está longe de ser pacificado internamente: na França, berço da Revolução, tramita uma proposta que vai na contramão da iniciativa comunitária, ampliando hipóteses de aplicação de tecnologias de alto risco. Por lá, inclusive, um decreto de março autorizou o emprego do reconhecimento facial para fiscalizar quem não utiliza máscara nos transportes.
A questão é tão delicada que, mesmo nos Estados Unidos, onde desde o 11 de setembro certas garantias individuais vêm sendo sistematicamente reduzidas em nome do interesse público, algumas bigtechs abandonaram suas pesquisas sobre reconhecimento facial. De igual maneira, cidades como São Francisco e Oakland proibiram o uso de tal ferramenta pelas polícias, sob o argumento de que a falta de maturidade tecnológica acaba intensificando os chamados falsos positivos, ou seja, prisões com base em reconhecimentos equivocados.
No Brasil, a pressão por soluções para a segurança pública coincide com a profusão de projetos de lei e iniciativas que envolvem a utilização da tecnologia de reconhecimento facial. Preocupações quanto aos excessos cometidos a partir do vigilantismo estatal justificaram a emergência de um anteprojeto de lei apelidado de “LGPD penal” e que está nas mãos da Câmara dos Deputados, onde aguarda tramitação. A ideia é estabelecer limites à utilização de dados pessoais e tecnologias intrusivas de alto risco, contribuindo, ainda, para recolocar o Brasil na trilha da cooperação internacional em matéria de segurança pública.
Em tempos de pandemia, ser contactless é palavra de ordem. E aí pode estar uma grande oportunidade para catalisar os esforços no sentido de que se atinja uma utilização responsável da tecnologia de reconhecimento facial. Para isso, é mandatório definir claramente qual papel a sociedade deseja que os governos desempenhem, utilizando-se das novas possibilidades que o progresso oferece. Trata-se de uma reflexão absolutamente relevante, pois em um contexto em que o potencial de aplicação da tecnologia parece tender ao infinito, o céu definitivamente já não será mais o limite.
Dias melhores virão, quando máscaras não passarão de lembranças de uma ‘página infeliz da nossa história’. E quando esse tempo chegar, já com as faces novamente desnudas, nada restará para salvaguardar garantias conquistadas ao longo de séculos, senão um necessário framework regulatório que permita à sociedade usufruir daquilo que de melhor a tecnologia tenha a nos oferecer.
Há uma Sapucaí a ser percorrida por bem trabalhadas alegorias. Mesmo em terras de Momo, uma realidade não pode ser esquecida: relativizar direitos fundamentais é coisa que nunca esteve nos enredos mais promissores da história. O reconhecimento facial pode ser valiosa ferramenta para autoridades desempenharem seus papéis, mas basear nela — e somente nela — decisões como a de privar alguém de sua liberdade pode representar um infeliz caminho sem volta. Acumulando-se erros e injustiças, não demorará para que uma avalanche legislativa soterre o reconhecimento facial. Abram alas para a tecnologia, com um “viva” para cada estudo sobre os limites de sua utilização. Algo tão promissor não pode acabar rebaixado ‘pro segundo grupo, e com razão’, como nos versos de Jorge Aragão.
Bons eram aqueles tempos em que Zorro conseguia salvar o dia, escondendo sua verdadeira identidade atrás de uma modesta faixa entre os olhos. Tragam suas maschere, venezianos: o bloco do reconhecimento facial está na rua, e o desfile apenas começou. Mas divirtam-se com moderação; usar máscara nunca foi coisa tão séria.