OPINIÃO

Artigo — Orçamento público e questão racial: uma proposta de agenda

Por CLARA MARINHO PEREIRA

O orçamento, longe de ser uma peça técnica, explicita quem ganha e quem perde na repartição da riqueza social. Muito embora a situação da população negra inspire a formulação de políticas de redução das desigualdades, o debate sobre o gasto público e a questão racial ainda é incipiente no Brasil.

Para avançar no tema, é preciso ter em conta três questões. A primeira é que, apesar de a população negra representar 56% do total de brasileiros, sua participação no processo decisório do orçamento é limitada. Isso se expressa, por exemplo, na baixa proporção de negros nas carreiras de finanças públicas no Executivo e no Legislativo Federal; no conjunto dos parlamentares e mais especificamente na Comissão Mista de Orçamento, do Congresso Nacional. A segunda é que as medidas de restrição do gasto público não contêm previsões sobre os impactos nas condições de vida da população negra. Isto é, como esse segmento “se vira” para atender às suas necessidades é uma variável ignorada. Por fim, que a complexidade do nosso arcabouço fiscal e a manutenção de uma linguagem difícil a seu respeito afastam a população brasileira em geral, e a negra, em particular, da discussão sobre alocação de recursos no orçamento.

Isso posto, que breve diagnóstico é possível fazer sobre a (des)articulação entre o orçamento público e a questão racial? Primeiro, que a falta de prioridade das políticas de promoção da igualdade racial nos planos de governo, corresponde uma invisibilidade orçamentária. Mesmo que essas políticas existam, é muito difícil saber quanto os governos gastam nelas visando promover uma sociedade livre do racismo.

Segundo, que não há uma preocupação em sinalizar nos orçamentos quais recursos beneficiam diretamente a população negra e seus segmentos nas políticas universais. Tomando-a como uma abstração numérica, ignora-se se ela está sendo adequadamente atendida nos sistemas de saúde, na educação, assistência social, etc. Melhor dizendo, a produção e a manutenção das desigualdades raciais pelo gasto público não são monitoradas.

Dito isso, há espaço para uma agenda positiva que articule orçamento público e o enfrentamento da questão racial? A seguir, alternativas são elencadas para pensarmos a respeito. No curto prazo, é possível começar fazendo o contrário do que acontece hoje. Articulando planos e orçamentos, pode-se: (1) identificar as ações orçamentárias que promovem a igualdade racial; (2) estabelecer metas específicas de atendimento da população negra nas políticas universais; e (3) comunicar com simplicidade e clareza o que é feito. Quantificando os recursos e beneficiários, pode-se saber ao fim de um ano o montante gasto para a melhoria das condições de vida de pessoas negras. No médio prazo, pode-se pensar em um documento anexo aos planos e orçamentos que explicite como o gasto público atua no combate às desigualdades raciais. Ou seja, uma prestação de contas periódica feita à sociedade quanto ao papel do poder público na garantia plena da cidadania da população negra.

Em prazo mais longo, pode-se aperfeiçoar o (re)desenho das políticas públicas, condicionando recursos adicionais às pastas de governo ao enfrentamento das desigualdades raciais. Esse tipo de incentivo orçamentário já está sinalizado, inclusive, no novo Fundeb, Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica: parte da complementação do valor anual por aluno dependerá da redução das desigualdades raciais medidas pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb). Não é um desatino pensar, por exemplo, na possibilidade de conceder recursos adicionais às polícias somente a partir da redução global do número de mortes cometidas por seus agentes. Os incentivos orçamentários, aliás, podem se traduzir numa nova fronteira de inovação para o setor público, na medida em que endereçarem problemas concretos vividos pela população negra.

Entende-se que essa é uma agenda possível, que pode, desde já, ser acolhida pelos poderes Executivo e Legislativo país afora, que dialoga com as demandas históricas dos movimentos negros pela democratização do Estado brasileiro e que é capaz de contribuir para a construção de uma “sociedade livre, justa e solidária”. E antirracista.