São mais de 475 mil sonhos interrompidos, lugares vazios no sofá ou à mesa de jantar, vozes silenciadas para sempre, abraços e beijos perdidos no passado. Centenas de milhares de filhos que não terão mais os conselhos do pai, o amor incondicional da mãe, um pedaço de si mesmos. Tantos planos desfeitos e casais separados pelo destino. Em pouco mais de 10 dias, provavelmente chegaremos a meio milhão de mortos pela covid-19. É como se lançassem uma bomba sobre Brasília e pulverizassem um sexto da população. Ou como se as cidades de Florianópolis ou Vila Velha (ES) deixassem de existir. O negacionismo, a inação, o desprezo pela ciência e pela vida humana potencializaram a tragédia provocada pelo Sars-CoV-2.
Ao longo de 15 meses, declarações repletas de ironia e de sarcasmo mórbidos do presidente da República ajudaram a abrir as covas Brasil afora: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Sou Messias, mas não faço milagres”; “Não sou coveiro, tá?”; “Tem que deixar de ser um país de maricas”; “Eu estou com covid” (aos risos e debochando). Por duas vezes, Jair Bolsonaro tripudiou sobre os doentes com covid-19 e, de forma bizarra, simulou pessoas com falta de ar, em sua live semanal na internet. O comportamento, digno de avaliação psiquiátrica, é respaldado pelas denúncias de que o governo federal ignorou 53 e-mails da Pfizer e deixou de comprar a vacina pela metade do preço atual.
As recentes evidências da existência de uma espécie de gabinete das sombras, paralelo ao Ministério da Saúde e recheado de negacionistas, tornam ainda mais dantesca a nossa tragédia. Se elas forem consistentes, a política de enfrentamento da pior crise sanitária da história do Brasil foi colocada nas mãos de terraplanistas, de pessoas que, a despeito dos estudos científicos, tratam a hidroxicloroquina como o Santo Graal. Nas últimas semanas, a CPI da Covid-19 tem escancarado as portas de um desastre que, apesar de inevitável, poderia ter sido minimizado, caso a atuação do governo fosse de respeito à ciência e às vacinas e de consideração pelas vidas humanas.
Em quatro dias, o Brasil começará a sediar a Copa América, um torneio sem importância efetiva, em um momento totalmente descabido. Os esforços do Planalto para que o país fosse anfitrião dos jogos aponta para a distorção das prioridades. Tivesse atuado com tamanha agilidade e eficiência em relação às vacinas, a maioria da população estaria imunizada. A Copa América demonstra as prioridades de quem deveria liderar a nação no caminho da segurança, da saúde e da vida. Nos Estados Unidos, o negacionismo e o comportamento histriônico custaram o poder a Donald Trump. No Brasil, ainda que prematuras, pesquisas de opinião pública sugerem destino parecido para Bolsonaro. O fato é que ninguém devolverá à vida 475 mil sonhos, presenças queridas na sala de estar ou à mesa de jantar, abraços, beijos, conselhos, demonstrações de afeto e de amor, planos. São vidas para sempre desfeitas. Vidas sem preço.