A Turquia tornou-se uma república democrática, laica, parlamentarista e multipartidária em 1923 sob a liderança histórica de Atatürk. Durante 15 anos, como primeiro-ministro, promoveu uma série DE reformas no país para mudar as estruturas políticas, legais, religiosas, culturais, sociais e econômicas da Turquia Otomana, transformando-a em um estado secular.
Esse cenário começa a mudar com a eleição de Recep Tayyip Erdogan como primeiro-ministro da Turquia em 2003. Desde então, tivemos um conjunto de fatos em sequência: agosto de 2014 — é eleito presidente pelo voto direto; julho de 2016 — uma tentativa de golpe é reprimida de forma violenta, levando à decretação de estado de emergência, com mais de 50 mil presos, entre os quais mais de 150 jornalistas; abril de 2017 — um referendo aprova a mudança da Constituição, introduzindo o regime presidencialista e conferindo ao presidente poderes para intervir no Judiciário e impor estado de emergência; junho de 2018 — Erdogan é reeleito presidente e ainda poderá concorrer novamente em 2023.
Pegando o voo de Istambul para Brasília, em 2018 tivemos a eleição de Bolsonaro. Entre os diversos acontecimentos que se seguiram à posse em 1º de janeiro de 2019, é interessante destacar os seguintes: 8de outubro de2019, começa uma paralisação parcial da PM da Bahia; 18 de fevereiro de 2020, começa motim dos PM no Ceará que dura 13 dias; 28 de março de 2021, um PM, em Salvador (BA), começa a fazer disparos para o alto e acaba morto pela equipe do Bope; 30 de março de 2021, os comandantes das FFAA, após resistirem à demissão do então ministro da Defesa, são exonerados pelo presidente, que, em contrapartida, é obrigado a acatar a nomeação de um desafeto como novo comandante do Exército; 23 de maio de 2021, o presidente promove uma manifestação no Rio de Janeiro e leva ao palanque o ex-ministro Pazuello, general da ativa, provocando tensão junto ao alto-comando das Forças Armadas (FFAA); 27 de maio de 2021, o presidente pede, pessoalmente, ao comandante do Exército para descumprir o regulamento militar e não punir Pazuello; 29 de maio de 2021, em Recife, numa manifestação pacífica contra o presidente, uma equipe do Bope, à revelia do governador, reprimiu de forma violenta, disparando a esmo balas de borracha e provocando a perda de visão de duas pessoas que não participavam do ato; 31 de maio de 2021, um PM de Goiás prendeu e algemou um professor por se recusar a retirar do capô do carro uma faixa contra o presidente.
Em todas as situações descritas acima, o presidente declarou seu apoio aos movimentos sabidamente ilegais. E, não satisfeito, na última quarta-feira o governo divulgou que o Ministério da Justiça pretende fazer uma pesquisa nacional sobre a qualidade de vida de todos os policiais militares e policiais civis dos 26 estados e do DF, por meio de um questionário sobre as condições salariais e de moradia, entre outros pontos.
Diante de todos esses fatos, as perguntas mais relevantes a serem feitas são: o que o presidente pretende com esses movimentos; qual seu principal objetivo? Vejo na mídia e nas redes muita gente preocupada com a possibilidade dele promover um autogolpe com apoio militar. Respeito essa avaliação, mas não me parece que seja o caminho adotado e já em curso.
Bolsonaro tem um histórico marcado por sucessivas vitórias eleitorais em seus 28 anos de vida parlamentar. Durante esse tempo fez questão de viabilizar a eleição de familiares, notadamente seus três filhos. Ou seja, sempre soube utilizar os instrumentos da democracia em benefício próprio.
É pública e notória a ligação política que a família construiu com policiais civis e militares no estado do Rio de Janeiro, boa parte deles vinculada a grupos milicianos. Deve ser acrescida, no caso do presidente, sua atuação em defesa de bandeiras corporativas de militares das FFAA, notadamente praças, soldados e a baixa oficialidade.
Para resolver as restrições do alto oficialato a seu nome, nomeou mais de 6 mil militares da ativa e da reserva em cargos civis no governo. De forma otimista ou ingênua, muitos de nós considerávamos, no início de seu governo, que a presença de determinados generais ao seu lado seria uma garantia de contenção para seus conhecidos arroubos. Ledo engano! Está claro que foram completamente cooptados, seja pelo novo status, seja pelas benesses pecuniárias.
Parece cada vez mais claro que Bolsonaro resolveu ir a Istambul fazer um cursinho com Erdogan e, no voo de volta, fazer escalas de aconselhamento em Moscou e Nova Delhi. Esse é o verdadeiro risco para a democracia brasileira que precisa ser evitado.