Oito meses depois de chegar ao Congresso Nacional, a reforma administrativa enfrenta forte resistência de diferentes setores da sociedade civil e de boa parte do Legislativo. Apesar disso e da ausência de argumentos e dados sólidos que justifiquem a proposta encaminhada pelo Executivo, parlamentares governistas tentam passar o rolo compressor para aprovar a reforma a qualquer custo, como um “último recibo” deste governo em um ano pré-eleitoral e com a economia dilacerada pelas consequências de uma pandemia negligenciada pelo próprio Executivo.
Mas tudo indica que não será fácil ludibriar o parlamento e a população. A proposta terá de ser analisada por comissão especial, que ainda não foi instalada, e pode realizar até 40 sessões para discutir o texto. Depois disso, a PEC precisará ser aprovada em dois turnos e por 3/5 do Plenário da Câmara (ou seja, por 308 deputados). Daí, seguirá à análise do Senado.
Na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, o parecer aprovado do relator na CCJ, deputado Darci de Matos (PSD-SC), fez apenas três ressalvas à PEC enviada pelo governo. De resto, preserva a PEC 32, que corta na carne de quem está à frente do atendimento à população e mantém intocável a elite do funcionalismo, com salários acima do teto constitucional (atualmente, R$ 39,2 mil).
Se aprovada, a reforma administrativa acabará com direitos históricos e a estabilidade de determinadas categorias, além de facilitar ainda mais a venda de empresas públicas imprescindíveis ao país, a exemplo da Caixa Econômica Federal. Embora alcance servidores dos três Poderes e nas três esferas — União, estados e municípios — a PEC preserva privilégios e salários daqueles que formam o topo do poder e mais impactam no orçamento público: parlamentares, ministros de tribunais superiores, juízes, desembargadores, promotores e procuradores. O real objetivo desta reforma é beneficiar os amigos do rei e punir quem presta atendimentos essenciais à sociedade com a falácia de “melhora da qualidade do serviço público”.
O governo mira apenas nos trabalhadores que estão à frente da assistência à população todos os dias, servindo de fato ao país, com salários que não chegam nem perto daqueles que permanecerão blindados e privilegiados. É o caso dos bancários da Caixa, responsáveis pela operacionalização de diversos programas sociais nas áreas de habitação, saúde, saneamento, educação e infraestrutura. Trabalhadores que estão à frente, desde o início da pandemia, do pagamento centralizado do auxílio emergencial e de outros benefícios a 160 milhões de pessoas, o que representa mais da metade da população brasileira.
Um dos dispositivos da PEC 32 que mais impactam os empregados da Caixa e de outras empresas públicas é relativo ao artigo 173 da Constituição. De acordo com o novo parágrafo 7º, previsto no texto da reforma administrativa, torna-se “nula a concessão de estabilidade no emprego ou de proteção contra a despedida para empregados de empresas públicas, sociedades de economia mista e das subsidiárias dessas empresas e sociedades por meio de negociação, coletiva ou individual, ou de ato normativo que não seja aplicável aos trabalhadores da iniciativa privada”. Isto significa que, para os empregados destas estatais, as convenções e os acordos coletivos — que têm o objetivo de evitar demissões injustas ou infundadas — não terão efeito.
É indiscutível que a estabilidade no serviço público e os mecanismos contra demissões imotivadas são, na verdade, proteções ao Estado brasileiro. É uma garantia para que forças políticas ou outras motivações subjetivas e questionáveis não afastem servidores arbitrariamente e interrompam ações e programas de Estado, que beneficiam a sociedade.
A reforma administrativa que o governo tenta entubar em nosso país tão maltratado é, portanto, mais uma perspectiva sombria. Será, na verdade, a destruição do Estado e dos serviços públicos. Neste sentido, a PEC abre brechas perigosas para a corrupção e o uso político da máquina pública.
Está muito claro que a PEC 32 não tem o objetivo de trazer mais eficiência ao funcionalismo e aperfeiçoar o modelo de Estado; tampouco melhorar a capacidade de se oferecer serviços públicos de melhor qualidade. Esta “reforma” está concentrada na perseguição de determinados servidores, destruindo direitos e acabando com a proteção constitucional que evita apadrinhamentos políticos ou perseguições ideológicas.
Na prática, a atuação do Estado seria a exceção em vez da regra, impondo a visão privatista do governo Bolsonaro. Mas, a crise tem mostrado — inclusive aos que defendem o Estado mínimo e as privatizações — a importância do setor público, a exemplo do Sistema Único de Saúde (SUS) e dos bancos públicos, como a Caixa.
No entendimento da Fenae, a PEC 32 é mais um equívoco do governo, que não apresenta propostas consistentes e sustentáveis para o país sair da crise. Ao invés disso, edita a Portaria 4.975 (no final do último mês de abril). Com essa canetada imoral, beneficia cerca de mil servidores que ficarão livres do chamado “abate teto” e terão aumentos de até 69%, com remunerações que ultrapassarão R$ 66 mil por mês; entre eles, o próprio presidente Bolsonaro e quase 100 militares da reserva que ocupam cargos comissionados.
É absurdo o governo defender uma reforma administrativa viesada, obscura, distorcida e, ao mesmo tempo, manter afagos àqueles que já são privilegiados. Chega de dois pesos e duas medidas em nosso Brasil já tão desigual.
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