O conceito de ambiente seguro perdeu sentido no cenário doméstico. Tornou-se um espaço de sevícias físicas, psicológicas, sexuais, negligência e morte, onde as vítimas são crianças e adolescentes. Serve também de estúdio para gravação de vídeos de pornografia infantojuvenil. A pandemia do novo coronavírus não inibiu a escalada de abuso e violência sexual contra crianças e adolescentes. Ao contrário. A cada uma hora, pelo menos 11 crianças são agredidas. Foi o que revelou o balanço do Disque 100, canal de denúncias ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.
No ano passado, foram 95.247 queixas contra 86.800 em 2019. No Distrito Federal, capital do país, as denúncias de violência contra os menores aumentaram 236,13% em 2020, na comparação com o ano anterior, segundo a Secretaria de Justiça (Sejus), sendo a maioria dos casos. Em boa medida, além dos fatores socioeconômicos, que levaram ao empobrecimento das famílias, desatenção, descaso e maus-tratos pelos pais ou responsáveis empurram os adolescentes para as ruas.
Não por acaso, expressiva parcela se torna presa fácil de inescrupulosos e chega ao mercado do sexo. No ranking mundial de exploração sexual, o Brasil ocupa a segunda posição, atrás da Tailândia, no sul da Ásia. Aqui, pelo menos 500 mil crianças e adolescentes são peças desse infame nicho de negócios, em que o aliciador lucra com a depravação dos agressores. A Childhood Brasil estima que apenas 10% dos casos de violência e exploração sexual infantojuvenil, entre indivíduos de 12 e 18 anos, são notificados às autoridades de segurança pública. A maioria (75%) são meninas negras.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública contabilizou, em 2019, 66.123 estupros, dos quais 57,9% foram de vulneráveis, ou seja, as vítimas tinham, no máximo, 13 anos — a cada minuto, uma menina com essa idade foi estuprada no país. No primeiro semestre de 2020, foram registradas 25.712 mortes intencionais, alta de 7,1% na comparação com o ano anterior. Em 2019, crianças e adolescentes somaram 10,3% das vítimas de homicídio, sendo que 75% eram negras.
Embora autoridades e adultos garantam que crianças e jovens são o futuro de uma nação, o discurso é absolutamente vazio. Hoje, a população infantojuvenil é vítima da desumanização que infecta a população e os lares. Não basta ficar estarrecido com o noticiário sobre as atrocidades cometidas contra os menores. É preciso agir, prevenir, denunciar e exigir ação rápida daqueles que têm a responsabilidade por zelar pela segurança de todos.
Ao poder público, por sua vez, impõe-se levar a sério dados tão estarrecedores e desenvolver políticas de proteção às crianças e aos adolescentes, a começar pela melhoria das escolas e a implantação de creches, evitando que fiquem vulneráveis ou a rua seja a única opção.
Os educadores devem ser alertados e ficar atentos aos sinais que crianças e adolescentes emitem quando vítimas de violência, por meio de mudança de comportamento ou por ações para chamar a atenção. São apelos nem sempre verbalizados. O silêncio resulta do medo, do pânico pelas ameaças feitas pelos agressores, que estão dentro de casa. Vizinhos e parentes não podem ser omissos diante de evidências que revelam que os menores estão em perigo ou foram gravemente agredidos.
Não é a lei ou a Justiça que vai impedir a tragédia, mas a indignação daqueles para os quais a vida de crianças e jovens realmente importa. Os pais devem traduzir em cuidado o amor que afirmam sentir por seus filhos. Violência não educa, mortifica. O lar deve ser doce, não espaço de tortura e opressão.