No livro O segredo judaico de resolução de problemas, o rabino Nilton Bonder apresenta de forma didática e divertida uma visão de vida popularmente conhecida como iídiche kop (cabeça de judeu), uma forma de questionamento aguçada e bastante perspicaz utilizada na busca de saídas para situações percebidas como irreversíveis.
Nesse processo, a realidade pode ser decomposta em quatro aspectos: o “aparente do aparente” (problema literal), o “oculto do aparente” (problema metafórico), o “aparente do oculto” (problema alusivo) e o “oculto do oculto” (problema secreto). Para cada um há caminhos específicos.
O “aparente do aparente” diz respeito à dimensão do óbvio e do concreto, devendo ser enfrentado com a pretensão de descobrir novos ângulos para olhar o problema. No “oculto do aparente”, a principal característica é que o elemento oculto atua ressaltando o aspecto visível, ajudando a encontrar respostas por meio de intervenções heterodoxas ou paradoxais que levem à sua dissecação. O “aparente do oculto” é o reino da intuição, em que se ultrapassam os limites do racional. Por fim, o “oculto do oculto”, no qual a ignorância só pode ser desvendada por meio da ação e/ou experimentação.
Tive a oportunidade de acompanhar ao vivo a maior parte das sessões da CPI da Covid nas duas primeiras semanas de trabalho, procurando prestar atenção ao comportamento de parlamentares e depoentes. De um lado, há o grupo de senadores independentes e de oposição destacando a tragédia das mais de 400 mil mortes com a intenção de deixar clara a responsabilidade direta do governo federal. De outro, a base de apoio ao governo atuando para isentar o presidente, enquanto aponta suas baterias para identificar os governos estaduais e municipais como os culpados. Até aí, nada de novo, certo? Porém é importante analisar a reação das pessoas alinhadas aos dois grupos, particularmente a repercussão nas redes sociais e, para isso, procurei usar os ensinamentos da iídiche kop.
A primeira observação diz respeito ao comportamento da oposição que parece não ter conseguido superar o aspecto “aparente do aparente” em seu embate com o presidente ao longo dos 28 meses de seu mandato. Ela continua centrando seus ataques na exploração das características comportamentais de Bolsonaro e de suas inúmeras declarações contraditórias. Ora, para quem o apoiou e ainda o apoia, mesmo que criticamente, isso não representa qualquer óbice. Diante desse quadro, é comum ver e ouvir pessoas perguntando algo do tipo “como é possível, com toda essa tragédia, ainda ter tanta gente o apoiando?”.
Para poder responder a essa pergunta, seria útil adotar o segundo aspecto, identificando o “oculto do aparente”. Nesse sentido, parece-me decisivo compreender que a resiliência nos percentuais de apoio ao presidente pode ser explicada pela sua capacidade de interpretar e dar vazão a um sentimento reprimido e difuso de revolta, quase recalque, contra um inimigo caracterizado por ele como representante de valores vinculados ao politicamente correto, aos ataques à família tradicional, ao globalismo, à corrupção, ao comunismo.
A militância pessoal do presidente, muito semelhante a de um influenciador digital, é pautada pela convocação de seus apoiadores para travar essa guerra permanente. A narrativa que serve de instrumento para animar seus soldados é constantemente eivada de meias verdades que, ao contrário das mentiras facilmente desmascaráveis, carregam consigo informações suficientes para gerar e estimular o ceticismo ou a desconfiança.
Para poder entrar em melhores condições nessa guerra, uma candidatura do polo democrático necessita desenvolver o aprendizado contido no aspecto “aparente do oculto”, substituindo a narrativa baseada na conclamação ao equilíbrio e à racionalidade por uma visão mais intuitiva e libertadora das certezas e dogmas que historicamente marcam seus posicionamentos. Mais do que nunca, o relevante passa a ser perguntar a si mesmos “por que não?”.
Por fim, entender que, em política, mais do que em outros territórios, a disputa é marcada por elementos que podem ser representados pelo “oculto do oculto”. Nessa situação, em que o cenário é de muitas incertezas, só é possível aplicar uma solução: agir! E tal ação será mais eficaz quanto maior a radicalização por ela transmitida. Afinal, na política, as pessoas se movem pela emoção. Vejo Bolsonaro favorito à reeleição, mas o polo democrático ainda pode mudar esse quadro, aprendendo desde já a praticar os ensinamentos da “cabeça de judeu”.