» Maurício Antônio Lopes
Pesquisador da Empresa Brasília de Pesquisa Agropecuária (Embrapa)
É pouco provável que a pandemia venha a reverter a globalização — processo que aprofundou as relações internacionais e a integração econômica, social, cultural e política no mundo, com impactos no comércio de bens e serviços, tecnologia e fluxos de pessoas, informações e investimentos. Mas é provável que a globalização acabe remodelada pelas muitas rupturas resultantes da atual crise. Forças geopolíticas e econômicas que operam há anos poderão ser intensificadas, acelerando mudanças nas relações entre países, no comércio internacional, na saúde e no bem-estar da sociedade.
Alguns movimentos geopolíticos dos últimos anos mostram grandes economias tendendo a empurrar a globalização para segundo plano, priorizando autossuficiência como forma de garantir empregos, segurança, estabilidade interna, capacidade inovadora e perspectivas econômicas renovadas. Vide o “nacionalismo econômico” adotado nos EUA por Donald Trump, seguido pela promessa de Joe Biden de gastar bilhões em aquisições no estilo “buy american”, alavancando investimentos com priorização para “empresas americanas, com produtos americanos e trabalhadores americanos”. A palavra “autossuficiência” tem também sido uma constante nos discursos e nas agendas dos líderes das duas nações mais populosas do mundo — China e Índia.
Esses exemplos ilustram um processo que poderá se amplificar, à medida que países abracem a autossuficiência como fonte de segurança e resiliência no mundo pós-pandemia. A despeito de todas as vantagens que mercados globalizados nos oferecem, cadeias de valor transnacionais são vulneráveis a riscos inesperados, que podem levar ao fechamento de fronteiras, a bloqueios e rupturas nas cadeias logísticas, além de fragilidades que podem emergir com economias poderosas buscando autossuficiência. Esse é um cenário que poderá levar a rupturas importantes em setores críticos para a sociedade, como a agricultura e o sistema alimentar.
Antes mesmo da emergência da crise da covid-19, já crescia a percepção de que o sistema alimentar precisaria ser reinventado, para melhor cumprir a missão de fornecer alimentos acessíveis, seguros, nutritivos e aceitáveis para todos. Em certos setores, poucas empresas detêm o controle de fatias enormes de mercado, concentração que ganha cada vez maior número de críticos na sociedade. Agora, a pandemia alimenta anseios por autossuficiência, com fortalecimento da produção doméstica em busca de segurança. A expectativa é que a produção local e as cadeias curtas de suprimento ampliem resiliência e controle sobre o sistema alimentar, garantindo o abastecimento, movimentando economias locais, contribuindo para a superação de desigualdades sociais e exclusão, problemas que ganharam grande visibilidade na crise.
Outra ruptura potencialmente impactante para a agricultura é a “transição nutricional”, com demanda por alimentos associada às mudanças demográficas e às expectativas dos consumidores, processo que poderá ser intensificado pela pandemia. Cientistas projetam para as próximas décadas importantes mudanças no padrão de consumo e dietas, com redução de demanda por alimentos amiláceos ou energéticos, e maior procura por proteínas nobres, legumes e frutas (vide American Journal of Agricultural Economics, Vol. 101:383, 2019). Países de alta renda importarão menos alimentos, pois suas populações já consomem muito e crescerão pouco nas próximas décadas. E a mobilização global contra o desperdício, que hoje leva para o lixo até 30% do alimento produzido, tenderá também a reduzir a demanda no futuro.
Outra ruptura no horizonte é tecnológica. Cresce em todo o mundo o investimento em fazendas verticais e estufas climatizadas, que poderão fortalecer a autossuficiência na produção de alimentos. A expectativa é de que fazendas verticais produzam, além de hortaliças folhosas, safras economicamente viáveis de frutas, legumes e grãos. Em artigo recente publicado pela Academia de Ciências dos Estados Unidos (PNAS Vol. 117:19131, 2020) cientistas descrevem a modelagem de uma fazenda vertical de trigo, com temperatura otimizada, luz artificial e altos níveis de CO2, em estrutura de 10 camadas, equivalente a um hectare de terra. E concluem ser possível produzir anualmente entre 700 e 1.940 toneladas do grão por hectare, o que equivale a aumentos impressionantes de 220 a 600 vezes o rendimento do trigo produzido no campo.
Altos custos de infraestrutura e iluminação artificial ainda limitam tal modelo de produção, mas diversas vantagens já impulsionam vigorosa busca por sua viabilidade no futuro. Fazendas verticais demandam áreas pequenas, podem ser operadas o ano todo, reutilizam a maior parte da água, eliminam exposição a pragas e doenças e não perdem nutrientes para o meio ambiente. E podem ser acopladas a usinas de captura de CO2 da atmosfera, que, injetado nas lavouras, eleva a produtividade. Com a disponibilidade de fontes renováveis e baratas de energia e aumentos nos preços de alimentos, a agricultura vertical poderá ganhar espaço, inclusive em áreas urbanas, em grande proximidade e sintonia com consumidores cada vez mais exigentes.
A globalização e a agricultura não perderão seus espaços no curto prazo, mas, certamente, serão pressionadas a se remodelar para o futuro. E uma grande nação agrícola como o Brasil precisa se habilitar a participar de forma ativa dessa remodelagem, o que só poderá ser alcançado com mais investimento em ciência, inteligência estratégica e capacidade de reinvenção.