OPINIÃO

Artigo: Ação afirmativa no Brasil e no mundo

Por Carlos Alberto Medeiros — Mestre em ciências jurídicas e sociais(UFF), doutor em história comparada (UFRJ). Militante e estudioso da questão racial, traduziu A autobiografia de Martin Luther King

A expressão “ação afirmativa” apareceu pela primeira vez nos Estados Unidos, num decreto presidencial, a Executive Order 10.925, de 6 de março de 1961, com a assinatura do então presidente John F. Kennedy, pelo qual as empresas contratadas pelo governo deveriam tratar seus empregados, inclusive no que se refere à promoção, “sem discriminação de raça, credo, cor ou nacionalidade”. Nascia aí uma política que seria aplicada em várias áreas, incluindo a educação superior.

Embora a medida e a expressão tenham surgido no contexto norte-americano, essa política, também chamada de “discriminação positiva”, tem sido implementada em diversos países com o objetivo de compensar grupos ditos “historicamente discriminados” ou “tradicionalmente excluídos”, antes mesmo do exemplo americano. É o caso da Índia, cuja Constituição, de 1948, estabelece cotas no serviço público, na educação e em todos os órgãos estatais para membros de “castas catalogadas”, mais tarde acrescidas de “tribos catalogadas”; da Malásia, que, na década seguinte, criou cotas para garantir a participação dos malaios propriamente ditos numa economia então dominada por chineses e indianos; do Líbano, em que o acesso à universidade e ao serviço público se dá por meio de cotas, de modo a espelhar as diferentes seitas religiosas na população; da antiga União Soviética, em que quatro por cento das vagas na Universidade de Moscou eram reservadas a alunos provenientes da Sibéria, a região mais atrasada do país.

Medidas dessa natureza foram adotadas ainda na Noruega e na Bélgica (para imigrantes), no Canadá (também para imigrantes, além de indígenas, mulheres, pessoas com deficiência), na Nigéria (grupos étnicos) e em outros países. Nos Estados Unidos, essas medidas também passaram a ser aplicadas a mulheres, indígenas, hispânicos (categoria que abrange os brasileiros que lá residem), asiáticos e outros grupos.

No caso do Brasil, a legislação está cheia de exemplos de discriminação positiva favorecendo mulheres, crianças, estudantes, idosos, pessoas com deficiência, pequenos e microempresários, moradores do Norte e do Nordeste — o que levou alguém a dizer que o problema não é a cota, mas a cor da cota, já que o próprio imposto de renda progressivo — objeto de tantas fraudes em sua prática — discrimina positivamente os pobres. O problema surge quando, na virada do milênio, medidas dessa espécie começam a ser aplicadas no Brasil para favorecer o ingresso de negros nas universidades públicas federais e estaduais e, depois, nos concursos para o serviço público, que acabaram sendo consideradas constitucionais por decisões unânimes do Supremo Tribunal Federal. Isso gerou intenso debate, muitas vezes com a peculiar convergência entre direita e setores de esquerda que costuma ocorrer no Brasil quando se trata da questão racial. Pouco a pouco, grande parte dos adversários acabou convencida do sucesso dessas medidas, incluindo veículos da imprensa como Veja e O Globo, que, por muito tempo, as combateram acerbamente.

Além de mudar radicalmente a paisagem humana de nossas universidades públicas, em que alunos negros (pretos e pardos) passaram a constituir, segundo dados recentes, mais de 50% do total, a discussão provocada pelas políticas de ação afirmativa acabou obrigando setores importantes de nossa sociedade a debaterem não exatamente cotas, mas o problema racial. Esse tema passou então a ocupar espaço crescente não apenas em reportagens, entrevistas, artigos assinados e editoriais, mas, também, nas páginas e até capas de revistas de moda. Ao mesmo tempo, a publicidade passou a apresentar negros em anúncios de produtos destinados às classes favorecidas, enquanto grandes empresas têm criado programas voltados a incorporá-los a seus quadros funcionais, incluindo os escalões superiores. Todo esse processo ganhou ainda mais visibilidade com o assassinato de George Floyd, em Minneapolis, e suas repercussões em todo o mundo e, particularmente, no Brasil.

Todo esse avanço não significa que o problema racial tenha sido resolvido em nosso país, já que medidas de ação afirmativa visam apenas proporcionar igualdade de oportunidades — garantir não que todos ganhem a corrida, mas que todos tenham a possibilidade de ganhá-la. Mas, se para vencer uma doença é preciso primeiramente reconhecê-la, e, então, iniciar o tratamento, isso pelo menos está acontecendo no Brasil. E não parece que os retrógrados poderosos de plantão sejam capazes de reverter esse processo.