JUSTIÇA

Querem impedir o MP de investigar os crimes. O retorno da PEC 37

"Como justificar para o mundo que, depois de ter o Brasil se comprometido internacionalmente com um modelo de MP investigativo, independente, internamente, adote outro diametralmente distinto?"

Quando nasceu o Tribunal Penal Internacional em 1998, experts em Direito Internacional consideraram a concepção de um Ministério Público (MP) investigativo e independente a maior conquista do Estatuto de Roma para a civilização. Este foi um dos principais argumentos para rebater a PEC 37, que propôs o monopólio do poder de investigação criminal para a polícia. Como justificar para o mundo que, depois de ter o Brasil se comprometido internacionalmente com um modelo de MP investigativo, independente, internamente, adote outro diametralmente distinto?

A aberração era tanta que a votação de rejeição foi proporcional, na Câmara: 430 x 9. É óbvio que estava sendo feita ali uma clara opção política. No Supremo Tribunal Federal (STF), o assunto foi objeto de reiteradas discussões e o pleno decidiu na mesma direção. Com certeza, o parlamento e o STF também levaram em conta que, nos “anos de chumbo” no Brasil, quando as forças militarizadas matavam a mando do Estado, sem acusação nem julgamento, quem investigou e responsabilizou os criminosos foi o MP, representado por corajosos promotores, como o saudoso Hélio Bicudo. Afinal, quem além do MP conseguiria ter investigado o “esquadrão da morte”?

Eis que, passados quase oito anos, um deputado que é delegado de polícia de carreira, como se não tivesse havido a votação histórica de 25/6/13, na condição de relator do projeto do novo CPP, voltou a propor na semana passada que o MP não tenha pleno poder de investigação criminal. Ele sugere que o MP fique restrito a investigações meramente suplementares. E aí surge a pergunta: como compatibilizar o que se propõe com o compromisso assumido pelo Brasil perante o mundo (incorporado à nossa Constituição) — MP plenamente investigativo e independente?

O Código de Processo Penal é de 1941 e sua atualização é importante, mas não dessa forma açodada, em plena pandemia. São incontáveis os problemas do relatório. A vítima, por exemplo, pela proposta ora apresentada, é tratada como mero objeto, que está condenada a sofrer as consequências do delito, não lhe sendo reconhecidos os direitos mínimos previstos pela Declaração de Princípios Básicos de Proteção às Vítimas de Crimes e de Abuso de Poder da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1985. Em matéria de justiça restaurativa, a pessoa ofendida mais parece uma corresponsável pelo crime, e não alguém que deve ser protegido.

A vida humana nem parece o bem mais precioso, que merece proteção extrema. Pois, caso aprovado o relatório apresentado, institui-se a impunidade por lei, consagrando-se a não punição do extermínio de seres humanos como um novo e amargo padrão de justiça. Isto porque os homicídios são julgados por consciência, por leigos. O juiz elabora perguntas sobre os fatos que compõem a acusação (quesitação) e os jurados, à medida que as respondem sim ou não, afirmam ou negam autoria, materialidade, legítima defesa, estado de necessidade, qualificadoras, assim por diante.

A proposta é de supressão de perguntas sobre cada elemento componente da acusação, pretendendo-se que se indague diretamente se os jurados absolvem o réu ou não (uma única pergunta genérica), sem que os jurados sejam indagados claramente se houve crime e se o réu foi o autor. Com isso, escancara-se a porta para a impunidade da homofobia, do feminicídio, dos assassinatos racistas. Lembrando que, no Brasil, os jurados não debatem antes da decisão, diferentemente dos Estados Unidos, por exemplo.

O processo sempre foi bifásico, o que garante análise mais aprofundada sobre a admissibilidade das acusações. Mas o relatório praticamente suprime a fase do sumário de culpa, o que, diante do direito à mentira consagrado em nosso ordenamento para os acusados, somado a ideia que vem se consolidando de não se aceitar a validade da prova produzida na polícia, estabelecerá mais uma indústria legal de impunidade.

Ou seja, a prova da polícia já não vale e a prova do sumário não mais existirá. Depende-se do improvável comparecimento de testemunhas ao Tribunal do Júri, em que a punição dos mentirosos é muito pouco provável, ficando a condenação criminal dependente de incertezas e de um terreno que é verdadeira areia movediça.

A sociedade brasileira anseia por modernizações na lei, mas clama ao mesmo tempo por respeito à prevalência do interesse público. Não é admissível qualquer espécie de mudança que possa amesquinhar a plenitude investigativa penal do MP, que crie casulos de impunidade garantidos pela própria lei. Debate e caldo de galinha não fazem mal a ninguém.

Roberto Livianu é procurador de Justiça em São Paulo e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção