Desde 1960 Circe Cunha (interina) // circecunha.df@dabr.com.br
Dentro do que a Constituição de 1988 assegurou como sendo um “sistema de freios e contrapesos”, capaz de impedir que qualquer um dos Três Poderes da República usurpe as prerrogativas e funções dos demais, ficou estabelecida, logo no artigo 2º, a separação dos Poderes do Estado, tornando-os harmônicos e independentes entre si.
Na prática, no entanto, o sistema tem funcionado de modo diferente do proposto pela Carta de 1988, ou, na melhor das hipóteses, de acordo com um sistema variável de interpretações subjetivas e ocasionais de cada magistrado do Supremo. Com isso, o tão pretendido constitucionalismo liberal, capaz de efetivar, na prática, o Estado democrático de direito, é posto de lado, prevalecendo, como recurso derradeiro, o que estabelecem e impõem aqueles que são incumbidos de servir de guardiões da Constituição e que, em última análise, se colocam como sendo os únicos capazes de verdadeiramente interpretar o texto da Magna Carta.
Com isso, a primeira vítima desse desarranjo legal acaba sendo o próprio equilíbrio de Poderes, ou, mais precisamente, o Executivo e o Legislativo, aos quais é imposto um freio legal e de arrumação, de acordo com a vontade soberana de cada um dos 11 juízes que compõem o Supremo Tribunal Federal (STF). Na realidade, o que se tem aqui, pelo que tem acontecido com as decisões do tipo monocráticas dos juízes, são 11 supremos individuais, dois supremos correspondentes a cada turma, mais um supremo, formado pelo plenário.
O que se tem aqui deixa de ser um Estado virtuoso e de harmonia para se tornar numa espécie de regime político, regido por indivíduos togados e não eleitos. Por se tratar de uma das “cláusulas pétreas”, conforme artigo 60, parágrafo 4º, o sistema de freios e contrapesos acabou por se constituir numa muralha ou fortaleza inexpugnável, capaz de proteger os juízes de quaisquer investidas externas, mesmo aquelas que, supostamente, a sociedade, por meio do Senado, poderiam admitir como necessárias.
O mais preocupante é que o problema da harmonia e da independência não fica restrito apenas ao Judiciário. Prolonga-se para os demais poderes, como tem ficado patente no caso do presidencialismo de coalizão, em que o Executivo é literalmente cooptado pela vontade expressa do Legislativo. Como contrapeso dessa disfunção orgânica, o Executivo se vê forçado a atender aos reclames clientelistas do parlamento, sem os quais não consegue governar.
A pandemia e a necessidade premente por vacinas e outras providências de ordem sanitária deixaram bem claro, para todos que querem ver, que no Brasil não existe harmonia e independência entre os Três Poderes, conforme desenhado pela Constituição. Em seu lugar vai sendo erguido um sistema de freios e contrapesos, ditado por pressões políticas e outros lobbies poderosos. É o que temos, e é tudo o que não precisamos ter.