Por André Gustavo Stumpf — Jornalista (andregustavo10@terra.com.br)
Nos anos noventa do século passado, o comando das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, conhecidas pela sigla FARC, alcançou o momento limite na decisão de seu futuro político. Suas tropas controlavam praticamente todo o território do país, com exceção da capital e das grandes cidades. Se decidisse marchar contra Bogotá, teria chances de derrubar o governo e montar uma nova administração, orientada pelos princípios do socialismo e com abertura para o livre trânsito da cocaína.
Mas formar governo é assunto muito complexo. Seria necessário estabelecer relações diplomáticas com outros países, participar de reuniões internacionais, definir metas de crescimento, controlar inflação, distribuir justiça, entre outros requisitos. Melhor continuar só com a guerrilha. Foi o que aconteceu. Recentemente, parte dos guerrilheiros decidiu criar um partido político e disputar eleições. A outra metade continuou sua luta no sul do país, ganhando dinheiro com a exportação de cocaína, atividade que perdeu sua conotação político-partidária. O jogo ficou claro.
O governo do presidente Bolsonaro poderia olhar para o exemplo colombiano. Se o grupo Bolsonaro&filhos não tivesse chegado à presidência da República, estaria hoje operando livremente suas atividades na Assembleia Legislativa do Rio, talvez na Câmara Federal e no Senado Federal sem dificuldade nem vigilância da imprensa. A intimidade com a milícia na Zona Oeste do Rio de Janeiro continuaria discreta, e o convívio da família com matadores profissionais não seria percebido. A presença de Jair, o grande chefe, no Palácio do Planalto, em Brasília, complicou a vida de todo o grupo. O exercício da política os colocou na vitrine.
A falta de experiência política determina a tragédia diária. O presidente não compreende que ele tem o poder, mas não dispõe de todo o poder. Pode muito, mas não pode tudo. O diagnóstico produzido pelos filhos não é suficiente para explicar a realidade. Colocou gente sua em diversos órgãos do governo federal, a maioria militares. Eles, contudo, não são políticos nem comungam com a mesma ideologia exótica do chefe do governo brasileiro. Eles apenas desfrutam a oportunidade de ganhar um pouco mais no final do mês. Nada além disso.
No período em que os generais estiveram no poder, entre 1964 e 1985, surgiu nos Estados Unidos um grupo de professores chamados de brazilianists, que estudou a história do Brasil e a presença dos militares nos principais eventos. Alfred Stepan e Thomas Skidmore fizeram belos trabalhos para explicar como funcionou o sistema militar, em que o presidente tinha mandato definido e era substituído ao final. Não havia reeleição. Um dos melhores trabalhos desta época é Soldados da Pátria, história do Exército brasileiro de 1889-1937, Frank McCann, Cia. das Letras. Infelizmente, McCann faleceu semana passada. É uma pesquisa de fôlego no qual o autor demonstra a preocupação dos militares em modernizar a força, mas antes ser necessário modernizar o país. Isso começa pelos tenentes de 1922 e 1924, passa pela Coluna Prestes e caminha pela história até chegar a 1964. O rompimento dos ditames constitucionais acontece em nome da preservação da ordem que proporciona o progresso.
Não há na história do Brasil um militar que tenha se transformado em pai da Pátria, protetor dos pobres ou supremo comandante, como ocorreu em vários países vizinhos. O fenômeno Hugo Chávez destruiu um bom exemplo de democracia que existia na Venezuela por meio de um acordo político chamado de Punto Fijo, semelhante ao Pacto de Moncloa, realizado na Espanha. Nos dois casos, em defesa das liberdades democráticas. Chávez, ao contrário, trucidou adversários, acabou com a liberdade e morreu. Entregou o poder a um motorista de ônibus que foi mais longe, controlou militares por meio de benefícios e transformou o país numa espécie de santuário para traficantes de drogas. Dinheiro para os protegidos do sistema não é problema na Venezuela. Nunca houve nada parecido no Brasil.
Talvez seja pedir muito que algum dos Bolsonaro leia um livro ou se oriente com quem conhece a história política brasileira. Mas é necessário entender que o Brasil é maior que suas pequenas abstrações. Golpe de estado é assunto para profissionais da política ou para quem efetivamente tem a força do fuzil e apoio de importantes segmentos civis da sociedade nacional. Salvo melhor juízo, ele não dispõe nem do perfil nem do suporte indispensáveis para um movimento dessa importância no Brasil. O que vai além disso é delírio.