OPINIÃO

Artigo: Doce Pimentinha

Há uma grande convergência de opiniões quanto à escolha da maior intérprete da música popular brasileira. É raro, entre críticos, artistas e atentos apreciadores do nosso rico e diversificado cancioneiro quem não atribua a Elis Regina esse galardão. Poucas são as cantoras, surgidas depois dela, que não a tomam como principal referência. As da mesma geração, por motivos óbvios, divergem.

Versátil na escolha do repertório para cantar em disco e show, chama a atenção de quem a ouve a gama de sentimentos que Elis imprimia a canções de diferentes estilos — indo da doçura à agressividade, da alegria ao choro, da introspecção ao arrebatamento. Como não se emocionar ouvindo-a em Atrás da porta, belíssimo hino dos amantes desesperados, com a assinatura de dois gigantes da MPB, Chico Buarque e Francis Hime. Essa é uma das faixas do Elis 72, álbum relançado recentemente nos formatos de CD, vinil e também nas plataformas digitais.

O disco, visto por muitos como o mais icônico do legado da Pimentinha — o apelido lhe foi dado por seu gênio forte, pelo poetinha Vinicius de Moraes, que a adorava – traz outros clássicos da importância de Águas de março (Tom Jobim), Nada será como antes (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos) e Casa no campo (Zé Rodrix e Tavito). Mas há outros trabalhos igualmente bem avaliados, como Falso brilhante (1976), Transversal do tempo (1978) e Essa Mulher (1979).

Este último foi lançado aqui na cidade, num raro show da cantora no Cine Brasília, em 23 e 24 de novembro daquele ano. No LP, o grande destaque era O bêbado e a equilibrista, composição de João Bosco e Aldir Blanc, que se transformou no hino da Anistia. Um dia antes, a entrevistei no saguão de um hotel no Setor Hoteleiro Norte. A matéria, publicada na capa do caderno de cultura do Correio, teve como título Endurecer para vida mas sem perder a doçura, que remetia à célebre frase atribuída a Che Guavara, citada por ela durante a conversa.

A citação veio quando Elis se reportou à participação na Olimpíada do Exército, em 21 de abril de 1972, imposta pelo temível general Emílio Garratazu Médici, que a via como inimiga do regime ditatorial, que o tinha como presidente naquele período. Curiosamente, quando a cantora morreu, em 19 de janeiro de 1982, o também general João Baptista Figueiredo, o último dos ditadores que, em 28 de agosto de 1979 havia sancionado a Lei da Anistia, enviou um telegrama de pêsames aos pais de Elis Regina. Já o atual mandatário do país não tomou conhecimento da perda do genial letrista Aldir Blanc (coautor de O bêbado e a equilibrista), um dos milhares de vítimas da pandemia da covid 19, que partiu em 4 de maio de 2020.