A Lei 7.170, de 14 de dezembro de 1983, chamada Lei de Segurança Nacional (LSN), é um fantasma do regime militar que foi instaurado, no Brasil, entre 1964 e 1985. Levantamento recente indica que a LSN tem sido o principal instrumento do governo Bolsonaro para enquadrar seus críticos. Seu uso cresceu 285% nos dois primeiros anos do atual governo em relação aos de Michel Temer e Dilma Rousseff.
Originariamente, este tipo de lei tem o objetivo de garantir a segurança do Estado e o perfeito funcionamento das instituições democráticas, observando o combate à criminalidade e direitos e deveres dos cidadãos. Desde 1935, o Brasil já teve quatro LSNs e quatro decretos-lei sobre este tema, quase todos sob regimes de exceção, como o Estado Novo autoritário de Getúlio Vargas e o regime militar, e sempre descambando para perseguição política dos inimigos internos de cada governo.
Já que o Executivo não faz sua parte, passou da hora de o Judiciário e o Legislativo assumirem o protagonismo deste tema e tomarem decisões para acabar ou reformular esse instrumento de abuso de autoridade. Há várias ações no Supremo Tribunal Federal de partidos de ideologias variadas (PSDB, PDT, PSB, PT, PSol e PCdoB) e mais de 20 projetos no Congresso Nacional neste sentido. O agravamento da pandemia, por mais que seja prioridade, não impede a discussão da LSN também nesses poderes, mesmo porque muitos alvos da LSN são críticos da má gestão do governo federal no combate ao coronavírus.
Os ministros do STF devem analisar, nestes dias, a exclusão de um trecho da LSN usado, principalmente, pelo agora advogado-geral da União, André Mendonça, para investigar e prender opositores, apelando, inclusive, ao artigo 26, que fixa pena de um a quatro anos de prisão a quem caluniar os chefes dos Três Poderes.
O entendimento dos ministros é de que o governo tem abusado na aplicação da lei. O curioso, entretanto, é que o próprio STF recorreu ao artigo 18 da LSN para prender o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ). O dispositivo estipula detenção de dois a seis anos a quem tentar impedir o livre exercício de qualquer um dos poderes da União ou dos Estados.
É evidente que existe limite entre liberdade de expressão e ofensas pessoais e todo excesso calunioso deve ser discutido e, se for o caso, punido. Mas enquadrar críticas com uma legislação que vem dos porões da ditadura é abuso mesmo. Recentemente, Mendonça se valeu também do Código Penal para tentar enquadrar como crime contra a honra os autores de outdoors que divulgaram, no estado do Tocantins, a mensagem de que o presidente da República “não vale um pequi roído”. Um simpatizante do governo acionou a Polícia Federal com notícia-crime pedindo prisão dos autores pela LSN. O inquérito, entretanto, foi arquivado.
Em agosto passado, como ministro da Justiça, Mendonça esteve envolvido num polêmico dossiê contra servidores “antifascistas”. O plenário do STF, então, suspendeu todo e qualquer ato do ministério para produção ou compartilhamento de informações sobre cidadãos. A corte, entretanto, fechou os olhos para a conduta do ministro e não abriu investigação. Em transmissão pelas redes sociais, em 20 de março, o ministro Ricardo Lewandowski afirmou que o STF tem um “encontro marcado” com a LSN. “O Supremo precisa dizer se esse fóssil normativo é ainda compatível, não só com a letra da Constituição de 1988, mas com o espírito da mesma”, afirmou.
O tema, portanto, já está nos plenários do STF e do Congresso. É preciso, agora, se debruçar sobre ele para conter arroubos autoritários de grupos delirantes que vão para as ruas pedir a volta da ditadura. Mas aí está a sinuca de bico para o Supremo. Fazer apologia à intervenção militar pode ser interpretado como crime pela própria LSN de 1983. Há, portanto, muito o que discutir no âmbito do Judiciário para garantir plenamente a democracia republicana brasileira.