Por Cristovam Buarque — Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
Todos os dias, milhões de brasileiros perdem horas preciosas em filas de ônibus e reclamam corretamente dos oportunistas fura-filas. Poucos percebem fora-filas: os que usam carros privados e os que não têm dinheiro nem vale-transporte. Há séculos, muitos brasileiros fazem fila para obter o que precisam, ao mesmo tempo em que outros não têm direito nem mesmo de esperar em fila, por falta absoluta de dinheiro; enquanto outros não precisam se submeter a filas porque têm muito dinheiro.
Por causa das ineficiências econômicas, a palavra “fila” caracteriza o dia a dia dos brasileiros, mas, por causa da injustiça social, não se percebe os que estão fora das filas, de um lado e de outro da escala de rendas. Alguns porque não precisam se submeter a elas, graças a privilégios e dinheiro; outros porque não têm o direito de entrar nelas. No meio, imprensados, os da fila, ignorando os extremos. Nós nos acostumamos a ver com naturalidade os que não precisam e ainda mais os que não conseguem entrar nas filas, por tratá-los como invisíveis.
No setor da saúde, nos indignamos com os que tentam furar a fila para tomar vacina, mas não percebemos a injustiça quando furam a fila ao usar dinheiro para o atendimento médico de um pediatra para o filho, dentista e todas as outras especialidades que não estão disponíveis no SUS com a urgência necessária. Apesar do nome, o sistema nacional de saúde não é único: de um lado, tem o SUS com suas filas e, do outro, o SES (Sistema Exclusivo de Saúde) sem fila para os que podem pagar.
Todos condenamos os fura-filas do SUS para tomar vacina, mas aceitamos que se fure a fila nas demais especialidades médicas, inclusive cirurgias, por meio do uso do dinheiro. Em alguns casos, há reclamação quando a fila se organiza por um pequeno papel numerado, mas não se protesta quando, perto dali, o atendimento é imediato, porque, no lugar do papel com o número da fila, usa-se papel-moeda. Aceita-se furar fila graças ao dinheiro. Nem se considera como fura-fila, são fora-filas, aceitos por convenção de que o dinheiro pode comprar saúde.
O mesmo vale para a educação. Em função do coronavírus, o Brasil descobriu que algumas boas escolas, em geral pagas e caras, com ensino remoto, computadores e internet em casa, permitem que alguns cheguem ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) com mais possibilidade de aprovação do que outros. Apesar de que a aprovação é conquistada pelo mérito do concorrente, os aprovados se beneficiaram da exclusão de muitos concorrentes ao longo da educação de base.
A desigualdade na qualidade da escola desiguala o preparo entre os candidatos, como uma forma de empurrar alguns para fora e outros para a frente da fila. De certa forma, alguns furaram a fila para ingresso na universidade, por pagarem uma boa escola ainda na educação de base. E não há reclamação, porque os fora da fila são invisíveis, porque não concluíram o ensino médio, ou concluíram um ensino médio sem qualidade que não lhes deu condição sequer de sonhar fazer o Enem.
Tanto quanto os que não podem pagar o transporte público não entram na fila do ônibus, os analfabetos, 12 milhões de brasileiros, não entram na fila do Enem para ingressar na universidade. Foram excluídos da formação por falta de oportunidade para desenvolver o talento no momento oportuno da educação de base, por isso, ficam impedidos de disputar, por mérito, uma vaga na universidade. Ninguém fura a fila para chegar à Seleção Brasileira de futebol, porque todos tiveram a mesma chance, a Seleção é pelo mérito, graças ao fato de que a bola é redonda para todos, independentemente da renda.
Temos a preocupação de assegurar os mesmos direitos para obter a vacina, não o mesmo direito para a qualidade e a urgência no atendimento de saúde e de educação, independentemente da renda e do endereço da pessoa. Nem ao menos considera-se que há injustiça em furar fila usando dinheiro para ter acesso à educação e à saúde de qualidade. É como se fosse normal furar fila por se ter muito dinheiro e normal ficar fora da fila por falta total de dinheiro. No meio, ficam os que, por pouco dinheiro, esperam na fila e se indignam com os que tentam desrespeitar a ordem, sem atentar para os fora da fila nos carros, ou os fora da fila caminhando. Os primeiros aceitamos pelas leis do mercado, os outros tornamos invisíveis.
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.