Por PAULA BALDUINO DE MELO — Antropóloga, professora do Instituto Federal de Brasília — Câmpus Planaltina, integrante da Irmandade Pretas Candangas e do Núcleo de Estudos em Agroecologia NEA Candombá.
O ambiente escolar, seja presencial ou virtual, está repleto de jovens desestimulados e professores frustrados. No contexto da pandemia instaurada pela covid-19, o desestímulo e a frustração parecem ainda mais aguçados pela realidade do ensino remoto, que já completou um ano nas escolas públicas.
Contudo, mesmo antes da pandemia, parecia haver nos espaços de educação formal uma distância entre as propostas pedagógicas e a vida das/os educandas/os. Já imaginou uma escola que provoca estudantes a pensarem sobre seu lugar no mundo? Uma escola que valoriza os saberes trazidos pelas/os educandas/os, suas famílias e comunidades? A educação pode nos conduzir à prática da liberdade?
A abordagem pedagógica das histórias de vida pode sinalizar um caminho. Trata-se da aposta em uma pedagogia enraizada na vida das pessoas que habitam a escola, propiciando ferramentas para se conhecer e compreender os processos históricos em que estamos inseridos, a partir da existência de cada um de nós. Nesse tipo de abordagem, o presente atua como interlocutor do passado e, consecutivamente, como locutor do futuro, como diz Nêgo Bispo.
Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo, é quilombola de Saco-Curtume, no semiárido piauiense. Lavrador e militante, partilha saberes transmitidos por ancestrais, nos livros Quilombos, modos e significados (2007) e Colonização, quilombos: modos e significações (2015). Como nos ensina Nêgo Bispo, passado-presente-futuro estão entrelaçados em uma temporalidade cíclica. Não se trata tanto do retorno às raízes, mas das possibilidades de negociação dos caminhos e, mais especialmente, onde é que se quer chegar.
As histórias de vida são um percurso para conectar memórias, ancestralidades e processos de ensino-aprendizagem. Em um país que tem 51% de negras e negros compondo sua população, mais o contingente populacional compreendido por 305 povos indígenas, este exercício conduz ao encontro com matrizes afro-pindorâmicas.
Bispo nos convida a descolonizar a linguagem e o pensamento. Pindorama, em Tupi-Guarani, é Terra das Palmeiras e corresponde ao que hoje chamamos América do Sul. Estamos falando de experiências que remontam à ancestralidade africana e de povos originários. A experiência de construir histórias de vida é um convite para se tornar narrador/a de sua própria realidade, autor/a de sua história, opondo-se ao que o projeto colonial e racista predeterminou, libertando-se da ordem (neo)colonial, reinventando-se, com âncora na ancestralidade.
Na perspectiva da pedagogia engajada, pode ser uma técnica que conecta a vontade de saber com a vontade de vir a ser. Pode ser um caminho para descolonizar o sujeito, que passa a (re)conhecer-se. Rememorar sua história é a possibilidade de reencontrar-se. O desafio está na potencialidade deste encontro. Mais do que (re)conhecer-se, a questão central é sentir-se parte destas histórias, incorporá-las à própria vida. As vidas ancestrais passam então a existir no sujeito presente. Esse é o poder da herança-memória, como fala a escritora Lia Vieira.
Contudo, a abordagem pedagógica das histórias de vida é apenas o pontapé inicial para a construção de uma pedagogia contracolonialista. A transformação dos espaços educativos também pode ser um elemento relevante na vivência da educação como prática da liberdade. Importante a compreensão de que a sala de aula é somente mais um dos espaços educativos; o tripé ensino-pesquisa-extensão sinaliza que outros espaços favorecem a construção de conhecimento a partir das vidas que habitam a escola.
As próprias comunidades de origem dos estudantes são espaços educativos. Enfim, a educação como prática da liberdade é um processo complexo. Para torná-la realidade, faz-se necessário transformar o currículo de modo que a pluralidade epistemológica permeie todo o processo formativo.
Histórias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak, e A pedagogia engajada, de Bell Hooks, são também uma inspiração. Se adiar o fim do mundo é sempre poder contar mais uma história, que a sala de aula seja um espaço para que, juntos, possamos contar nossas histórias, transformando-nos em uma comunidade aberta de aprendizado, ofertando e partilhando conhecimentos sobre como viver neste mundo.
Essa miríade de histórias pode nos ajudar a ampliar o horizonte existencial, enriquecendo nossas subjetividades. Que essas experiências possam contribuir para desnaturalizar a dominação e a opressão, nutrir desejos e práticas para construir liberdade e justiça.
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