Há 61 anos, em 21 de março de 1960, o regime do apartheid da África do Sul cometeu o crime conhecido como “o massacre de Sharpeville”. Naquela data, 69 jovens negros foram assassinados e mais de 200 ficaram feridos no bairro de Sharpeville, na cidade de Johannesburgo, apenas por terem saído às ruas, pacificamente, para reivindicar a extinção da Lei do Passe, que obrigava os negros a portarem cartões com o registro dos locais por onde lhes era permitido circular, tendo sido reprimidos com brutal violência. Para que essa data não fosse esquecida, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu 21 de março como o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial.
O Brasil é composto, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE, por cerca de 56,1% de negros. Contudo, a presença da comunidade negra não tem correspondência no acesso aos bens culturais e econômicos. O racismo e a desigualdade racial são resultantes dos cerca de 380 anos de escravidão de africanos e de seus descendentes. A luta contra o racismo é muito mais do que uma causa nacional: é a causa em favor de valores humanitários e civilizatórios que dão sentido à humanidade. Por essa razão, as ruas de inúmeras cidades do mundo foram tomadas por negros e não negros diante do bárbaro assassinato praticado pelos policiais que mataram George Floyd, diante das câmeras. E, enquanto ele gritava que não conseguia respirar, o policial ficava indiferente e com o joelho no seu pescoço.
No Brasil, o Atlas da Violência de 2020, aponta que os assassinatos de negros aumentaram 11,5% e os dos não negros diminuíram 12,9%. Além disso, destaca que negros são cerca de 76% das vítimas de crimes de assassinato. São jovens que perdiam os nomes e viravam números, estatísticas. Hoje, com a chegada dos smartphones e das câmeras, somos impactados com as imagens de Miguel, João Alberto, João Pedro, Emilly, Rebeca, Marielle e tantos mais, que são brutalmente mortos. As investigações para se chegar aos culpados por essas mortes ainda são lentas e em muitos dos casos caem no esquecimento, mas a dor de quem perde alguém querido é eterna. Nós não podemos esquecer nunca e temos que exigir a apuração e responsabilização dos culpados.
Infelizmente, a mentalidade que constrói tragédias como a de Sharpeville ainda é uma realidade no mundo e, especialmente, no Brasil pós-outubro de 2018. A violência do “caveirão” que entra nas comunidades e favelas e atira a esmo tem a mesma motivação do “mellow yellow” do tempo do apartheid na África do Sul: manter áreas populares atemorizadas, onde a presença do Estado se manifesta sempre para reprimir e ofender. É como se dissessem que Shaperville também é aqui. Contudo, distante de uma campanha de congraçamento e de paz, o discurso do atual governo é o da bala com bala, dente por dente, olho por olho, do aumento do armamento, do ódio. Trata-se de uma política de aumento da violência que com certeza vai vitimar ainda mais negros. Aliás, isso ocorre na medida em que o governo sinaliza com um auxílio emergencial, de menos de R$ 10 por dia, para socorrer às famílias que estão sem condições de manutenção. Analistas sociais sugerem que cerca de 75% dessas famílias são chefiadas por mulheres negras.
Nesse contexto, é fundamental defender as políticas de ações afirmativas, que elevaram o número de negros e negras nas universidades públicas, assegurar a previsão de cotas nos concursos públicos e a implementação do Estatuto da Igualdade Racial, lei 12.288/2010, marco histórico para a construção da igualdade de oportunidades entre negros e não-negros, que trouxe ao mundo jurídico brasileiro o instituto das ações afirmativas. O Estado brasileiro usou o trabalho de africanos escravizados e de seus descendentes para seu desenvolvimento. Nada mais justo do que a implementação das ações afirmativas para reparar, incluir, proteger e garantir à comunidade negra igualdade de oportunidades e direitos.
» Eloi Ferreira de Araujo, Ex-ministro da Igualdade Racial, ex-presidente da Fundação Cultural Palmares e embaixador do Movimento AR