Visão do Correio

Sem vacina, não dá pra ser feliz

É da questão do mercado de trabalho, no devastador cenário atual da pandemia de covid-19, que trata esse texto. Mas, antes, uma digressão. Em 1953, numa composição antológica sobre o secular drama da seca no Nordeste, Luiz Gonzaga fala sobre o auxílio a vítimas do flagelo e alerta para o mal que uma esmola pode fazer a um homem são: “Ou lhe mata de vergonha / ou vicia o cidadão”. Intitulada Vozes do Sertão, a canção foi composta em parceria com Zé Dantas. Nela, em vez de doações, eles defendem investimentos em açudes e barragens e na criação de empregos para o povo. “Livre, assim, nóis da esmola / que no fim dessa estiagem / lhe pagamo inté os juro / sem gastar nossa coragem”.
Agora, vejam só que coincidência. Em 1983, exatos 30 anos depois de Vozes do Sertão, o filho do Rei do Baião, Gonzaguinha, lançaria Um homem também chora. Na música, que se tornou mais conhecida na voz de Fagner, o compositor reflete sobre a importância fundamental que a atividade produtiva tem para a condição humana, para a dignidade do ser. Refere-se sobretudo ao universo masculino, quando diz: “E sem o seu trabalho, um homem não tem honra”. E mais adiante, no refrão, arremata: “Não dá pra ser feliz / Não dá pra ser feliz”.
Deixando a poesia de lado e voltando à dramática realidade: no Brasil, o sismo inicial provocado pela pandemia do novo coronavírus nos empregos formais provocou a perda de 240.702 vagas em março e mais 860.503, em abril. Mas as medidas tomadas para evitar novas demissões em massa — como o pagamento de parte do salário dos trabalhadores da iniciativa privada pelo governo federal, a concessão de crédito a empresas e o auxílio emergencial concedido a famílias mais vulneráveis — evitaram um desastre muito maior na economia brasileira. Mais que isso: levaram não apenas à recuperação dos mais de 1,1 milhão de empregos com carteira assinada que a covid-19 tragou naqueles dois fatídicos meses, elas fizeram com que o país fechasse o ano com resultado positivo nesse tipo de contratação.
No início de 2021, outra boa notícia. O Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério da Economia, surpreendeu analistas ao anunciar a criação de 260.353 vagas formais em janeiro. Nada menos que o melhor resultado para o mês desde 1992, quando iniciou-se a série histórica. O dado sugere que o ministro Paulo Guedes estava certo, ao menos em parte, quanto a uma possível retomada em “V” da atividade econômica. Contudo, especialistas chamam a atenção para o recrudescimento da pandemia de covid-19, que voltou a se disseminar com toda a força pelo país, além do fim do auxílio emergencial, que deixou de ser pago em janeiro. Diante disso, apostam que os bons números do emprego com carteira assinada não devem se repetir em fevereiro.
Ao perceber a tragédia despontando, governo e aliados trataram de reeditar as medidas que deram certo no ano passado. Uma delas, o auxílio emergencial, foi recriado por meio de proposta de emenda à Constituição. Serão pagas quatro parcelas, que vão variar de R$ 150 a R$ 375, cada uma, a cerca de 46 milhões de famílias. A primeira, referente a este mês de março, deve sair no início de abril. Dará certo a tentativa de salvar empresas e empregos? Com governadores e prefeitos vendo-se obrigados a decretar lockdown e toque de recolher devido ao colapso do sistema de saúde do país, a resposta óbvia é não. A menos que o governo ouça Guedes: “A solução é vacinar em massa para garantir o retorno seguro ao trabalho”, defendeu. Por enquanto, com a imunização a passos de tartaruga, não dá pra ser feliz.