OPINIÃO

Futebol não é mundo à parte

A reta final da temporada do futebol brasileiro coloca na vitrine um combo assustador de desserviços à sociedade. Do fim de 2020 ao início de 2021, o esporte mais popular no país colocou na vitrine algumas das nossas piores mazelas: racismo, xenofobia, machismo, assédio moral e até irresponsabilidade ao volante.

Em dezembro, o volante Gerson acusou o colombiano Índio Ramírez de injúria racial na virada do Flamengo por 4 x 3 contra o Bahia. O jogador do time tricolor teria dito ao rubro-negro: “Cala a boca, negro”, em um lance do jogo. Na mesma partida, uma leitura labial flagrou suposta xenofobia do atacante Bruno Henrique ao dirigir-se a Ramírez como “gringo de m...”.

Depois de classificar o Grêmio para a final da Copa do Brasil, Renato Gaúcho usou metáfora considerada machista ao tripudiar da posse de bola do São Paulo. O técnico fez uma analogia com paquera para explicar o sucesso do time gaúcho diante da posse de bola de 70% do rival.

“Teve um cara que pegou uma mulher bonita e a levou para jantar à luz de velas, conversou bastante. Saiu do restaurante, foi à boate e ficou até 5h da manhã com ela. Gastou uma saliva monstruosa. Ai, na boate, chegou um amigo meu. Conversou com ela 1 minuto e levou para o motel. Meu amigo ganhou o jogo”, concluiu Renato Gaúcho.

Na última quarta-feira, outro treinador, Fernando Diniz, surtou à beira do campo. Descontente com o meia Tchê Tchê, o chefe dirigiu-se ao atleta com as seguintes palavras durante a goleada do Bragantino por 4 x 2 sobre o líder do Brasileirão. “Seu ingrato do c..., seu perninha do c..., seu mascaradinho. Vai se f...”. Na entrevista coletiva, Diniz tentou explicar a cobrança. “Foi coisa do jogo. Tenho um jeito de cobrar, ele entende”. O mau exemplo é interpretado como assédio moral — um dos males combatidos no mercado corporativo.

A morte do casal de professores em decorrência do atropelamento causado por Marcinho, ex-lateral-direito do Botafogo, no Rio, é mais uma triste constatação de que o futebol se considera um mundo à parte, uma bolha fora da lei. Indiciado por duplo homicídio culposo — quando não há a intenção de matar — o jogador de 24 anos, com passagem pela Seleção, admitiu que conduzia o Mini Cooper e fugiu sem prestar socorro.

Há quem defenda que o futebol tem um código próprio de conduta no qual discursos racistas como “cala a bola, negro”; xenófobos, como “seu gringo de m...”; ou machistas do tipo “conversou com ela 1 minuto e levou para motel” são normais, ou seja, fazem parte de um mundo da bola. Discordo. É por causa de conivências como essas que temos, por exemplo, Robinho, um dos maiores talentos do país no início do século, processado, na Itália, por estupro coletivo. E nem falei sobre Neymar, hein, o gênio indomável... É preciso estabelecer limites, corrigir rumos. Queremos craques em série, mas não damos bola para a educação, a formação cidadã. O futebol não está acima do bem do mal. Pelo menos não deveria.