Visto, lido e ouvido

Desde 1960

Um novo mundo novo

Possivelmente, estamos assistindo ao parto dolorido de um novo mundo. Mas, para isso, será preciso que o velho ceda lugar ao que vem pela frente. Para os historiadores, não há surpresas nesse fenômeno, o mundo existe entre uma sístole e uma diástole e isso não pode ser alterado, faz parte da roda gigantesca que move todos. Para gurus da economia, estamos no preâmbulo final do que seria o capitalismo tradicional, com a instalação de uma nova ordem, talvez mais centrada em aspectos como a igualdade, o compartilhamento, a reciclagem, o reaproveitamento, a redução do consumo e outras formas de produção que, ao menos, minore o processo de esgotamento dos recursos naturais.

Nesse processo de mudanças gerais, até mesmo as grandes cidades sentirão os efeitos de uma nova época, sendo esvaziadas, com a possibilidade de um retorno das pessoas aos campos e a uma vida mais comunitária. Não se trata aqui de previsões feitas numa bola de cristal, anunciando um novo e regenerado mundo. O que parece vir pela frente não deixa alternativas. Para alguns cientistas políticos, nessas mudanças, até mesmo o grande Leviatã, representado pelo Estado onipresente e opressor, perderá muito de seu antigo prestígio, assim como boa parte da classe política e dirigente atual, que, aliás, já vinha tendo muito de seu prestígio posto por terra, em muitas partes do mundo Ocidental.

A descrença no Estado, na classe política e no capitalismo talvez seja a mudança que mais se fará sentir doravante, com reflexos ainda incertos para todos. Vivemos o que filósofos como o italiano Franco Berardi chamam de “epidemia de solidão”. É na solidão que o homem é capaz de refletir plenamente sobre si mesmo. Para Bernardi, o vírus produziu no corpo estressado da humanidade uma espécie de fixação psicótica, que foi capaz de deter o funcionamento abstrato da economia. Para esse filósofo e professor da Academia Brera, em Milão, autor de livros como Futurabilidade, Fenomenologia do Fim, Fábrica da Infelicidade e outros, a quarentena imposta pela pandemia da covid-19 forçou, como há milhares de anos vem acontecendo, a humanidade, na figura dos filósofos, a compreender, conceber e organizar o pensamento coletivo.

Esse é, para os que pensam o mundo, uma grande possibilidade de transformar esses fenômenos em conceitos que irão iluminar novos caminhos. Na sua avaliação, é preciso, antes de tudo, acreditar que existe uma saída ética, política e científica da atual crise, que poderá ser gerada pela própria imaginação filosófica. Ou é isso ou será a barbárie e a extinção, como muitos pregam. “Talvez o imprevisto subverta os planos do inevitável. Para ele, a missão da filosofia é imaginar o imprevisível, produzi-lo, provocá-lo e organizá-lo. Mas é no campo econômico onde o filósofo enxerga as mudanças mais profundas, com um possível colapso do que chama de “nós estruturais”, com consequências sérias para a demanda, para o consumo e com um período de deflação pela frente de longo prazo, o que, por sua vez, provocará uma crise também na produção, com reflexo direto no desemprego.

Segundo acredita, mais do que uma simples depressão, poderá haver o fim do modelo capitalista, com a implosão de uma série de conceitos e estruturas que mantém as sociedades unidas. Isso não quer dizer que haverá ainda, por um certo período, um grande fortalecimento das empresas digitais , o que poderá estimular um certo controle tecno-totalitário por parte de alguns governos. Há no horizonte, segundo pensa Berardi, uma bolha econômica no sistema financeiro que pode vir a estourar também. Todas essas mudanças, a seu ver, irão provocar um caos jamais visto, virando o mundo de cabeça para baixo.

Mas é no caos que o filósofo enxerga a proliferação de comunidades autônomas, com experimentos igualitários de sobrevivência. O próprio planeta, por seu estágio de deterioração, não permite mais o prolongamento do atual modelo capitalista de consumo. “O crescimento, diz, não retornará amanhã ou nunca.” As consequências do vírus não se fazem sentir apenas no seu âmbito de saúde da economia, mas se transformou numa espécie de doença psicológica e mental, que afeta, principalmente, a esperança no futuro. E isso, pondera, nos obrigará a imaginar novas formas de vida pós-pandemia, mais autônoma, centrada na autoprodução do necessário, na autodefesa, inclusive armada.

A rapidez e a complexidade dos eventos atuais são, na sua concepção, fortes demais para que haja uma elaboração emocional e consciente de tudo que se forma à nossa volta. O vírus, acredita ele, é uma entidade invisível e ingovernável, e o mundo parece se desfazer debaixo de nossos pés, sem que possamos fazer nada a respeito de forma imediata e definitiva. O mais sério parece ser a possibilidade de a vacina não decretar o fim da pandemia. Na impossibilidade de determos, a contento, as sérias consequências de um mundo pós-pandemia, o que parece ser mais efetivo é a criação de redes comunitárias autônomas que não se firmem em conceitos como o lucro e a acumulação, mas baseada em hábitos de sobrevivência mais frugais.

Nesse ponto o filósofo diz não acreditar em soluções de longo prazo. Não há tempo para isso. O mais sintomático é que as elites políticas, todas elas, não possuem capacidade de apresentar soluções mínimas para o problema. A política, como um todo, tornou-se impotente diante de um colapso de tal magnitude. Sentencia. Nesse instante a política tornou-se um jogo sem razão, sem conhecimento. As soluções que podem apresentar, neste momento, são, em sua visão, derivadas da raiva pela constatação da impotência diante da realidade. Ainda assim, a pandemia, diz, marca uma ruptura antropológica de profundidade abissal, justamente pela proibição de contatos mais íntimos. Trata-se, aqui, de uma epidemia de solidão que parece decretar a morte até da solidariedade. É uma verdadeira bomba atômica sobre nossas cabeças, acredita Franco Berardi.

O mais afetado será, sem dúvida, o consciente coletivo, por meio do que chama de sensibilização fóbica, com o inconsciente de todos capturado de forma abrupta.