Atento ao calendário, antecipei a celebração do Dia Internacional da Mulher ao assistir, na noite de domingo, no Canal Curta, uma preciosidade: o documentário que aborda a trajetória de vida e artística de Clementina de Jesus, autêntica representante da raça negra, que trazia consigo aspectos ligados à ancestralidade. A ex-cozinheira e empregada doméstica já era uma sexagenária quando foi descoberta para a música, pelo poeta e produtor Hermínio Bello de Carvalho, ao participar de rodas de samba na Taberna da Glória, no centro do Rio de Janeiro.
Filha de mãe parteira e de pai violeiro e capoeirista, Clementina, criada na comunidade de Carambita, periferia de Valença (RJ), aprendeu rezas em jejê nagô e canto no dialeto iorubano. Ao mudar-se com a família para Oswaldo Cruz, subúrbio da Zona Norte carioca, vizinho de Madureira, foi estudar no orfanato Santo Antônio, onde desenvolveu a crença católica. Essas influências resultaram num misticismo sincrético e numa musicalidade marcada pelo jongo e pelo samba, que ouvia na Portela.
Mas a carreira de cantora só teve início em 1965, quando, ao lado de Aracy Cortês, protagonizou o espetáculo Rosa de Ouro, idealizado e produzido por Hermínio. O timbre inconfundível de Clementina chamava a atenção de todos os que a ouviam no Teatro Jovem. Sob a batuta do seu protetor artístico, três anos depois estreou em disco, ao tomar parte do LP Gente da Antiga, que contava também com a participação de Pixinguinha e João da Baiana.
Entre os cinco LPs lançados por ela, o de maior repercussão foi o Clementina cadê você?, título, também, de um samba composto por Elton Medeiros. No entanto, foram os shows que proporcionaram popularidade à Mãe Quelé (como a chamavam os mais próximos). Na noitada de samba que ocorria no começo da década de 1970, no Teatro Opinião, em Copacabana, com a participação de Nelson Cavaquinho, Xangô da Mangueira, Dona Ivone Lara, Alcione, Beth Carvalho, entre outros bambas, a estrela era Clementina. Lá, encantado, a assisti pela primeira vez.
Voltei a estar na plateia daquela rainha negra em outras oportunidades, inclusive em Brasília, onde ela esteve para shows na Sala Funarte. O mais marcante, porém, ocorreu no Teatro da Escola Parque, em 1977, quando abriu o Projeto Pixinguinha, tendo a companhia de João Bosco. Ao cantar Embala eu, Marinheiro só, Moro na roça, Yaô e, principalmente, Benguelê — seu maior sucesso — levou o público ao delírio. Morta em 7 de junho em 1987, aos 86 anos, entrou para a história da música popular brasileira e se tornou referência para muitas sambistas que surgiram depois.