Rudy Reichstadt, no livro L’opium des imbéciles, estuda bem o fenômeno político da “polarização” (cheia de ódio pelo outro). Não resisto em transcrever trechos (Valor Econômico, 12/2). “É preocupante ver os valores compartilhados que formam a base de todas as democracias ameaçados de explodir por causa do avanço das teorias de complô. A invasão do Congresso americano mostra que essas teorias deixaram, finalmente, de ser consideradas como simples pequenas histórias sem consequência”.
“Trump contestou sua derrota com alegações infundadas de fraude, e seus apoiadores consideram que sua vitória foi roubada. Seus partidários vão viver os próximos quatro anos como uma espécie de ditadura que lhes foi imposta. Eles não vivem mais no mesmo mundo que o restante da sociedade americana. Isso é potencialmente gerador de grande violência, porque, se as pessoas não compartilham mais o mesmo mundo comum, não há mais diálogo democrático possível, há um diálogo de surdos. Não há acordo, nem mesmo sobre os fatos. Se as pessoas não se falam, não se ouvem, não se entendem mais, elas estimam que só resta a violência para serem ouvidas”.
E tece outra consideração. “Acho que ainda subestimamos os perigos do imaginário dos complôs e onde isso pode levar. É a primeira vez em um quarto de século que um presidente americano não consegue se reeleger, o que mostra que não devemos ser pessimistas”. Uma democracia sã consegue sempre conter as tentações conspiratórias que existem em estado latente, com formas de expressão mais ou menos autoritárias.
Os Estados Unidos são uma democracia antiga, mas, em outros países com uma cultura democrática menos implantada, mais recente, um Donald Trump bis, por exemplo, um Jair Bolsonaro, poderia perfeitamente conquistar um segundo mandato, continuando a provocar a histeria da população, dizendo ser obrigado a aumentar seus poderes porque a situação justificaria isso. Ele pode alegar que, se não agir, tentariam roubar as eleições. Isso é muito preocupante.
Para muitos, aderir a uma teoria de complô é se dar uma imagem heroica de si mesmo. É um potente transtorno de personalidade narcisista, destinado a se distinguir dos outros, aqueles que são carneirinhos e que engolem tudo o que ouvem. Os conspiradores se veem como iniciados, os que conhecem o que está por trás do jogo. Há um outro fator psicológico que chamo de dissonância cognitiva: você tem uma certa visão do mundo no momento em que acontecem eventos que contradizem totalmente essa versão. Há duas soluções: ou corrige-se a visão do mundo ou nega-se o que aconteceu. Nesse caso, as teorias de complô fornecem um meio de fugir da realidade. “Por exemplo, um muçulmano chocado com o assassinato de jornalistas que publicaram caricaturas de Maomé pode preferir achar que isso é uma conspiração contra o Islã em vez de achar que os assassinos mataram em nome de religião”. A educação é a melhor maneira de lutar contra essas teorias, mas isso leva tempo.
Quem é de extrema-direita ou de extrema-esquerda está, de uma certa maneira, excluído do jogo político. A situação não é mais representada segundo uma oposição tradicional entre esquerda e direita, ou progressista contra conservador, evidentemente, os que estão nos extremos se acham rejeitados e atacam o centro, que eles chamam de sistema. Daí os discursos antissistema, antielites, anti-intelectuais. Tudo isso é coerente com a teoria do complô: seu maniqueísmo simplista se alimenta da rejeição de complexidades.
É compreensível que os populistas e os extremistas consigam aderir às teorias de complô, que não apenas simplificam as coisas, mas também justificam a situação na qual eles se encontram. A teoria conspiratória os conforta no pensamento de que, se eles não estão representados no centro do jogo político, é porque existem forças escondidas que os impedem de convencer o conjunto da sociedade da pertinência de suas ideias. Veja o exemplo de líderes populistas como o ex-presidente Trump e Bolsonaro.
Aqui, no Brasil, jamais tivemos, nem na época do getulismo, uma sociedade tão dividida. E o impulsor disso todo mundo sabe quem é. É como se o Brasil, de repente, virasse um Estado onde os autores não são mais adversários, mas os atores inimigos, sejam os eleitores com os candidatos e os próprios políticos eleitos para os ramos Executivo e Legislativo da governança estatal e dos entes subnacionais. É um retrocesso desastroso e anticivilizatório.