Por Susanna do Val Moore — Agente da Polícia Federal formada em direito pela PUC-SP, instrutora de tiro na Academia Nacional da PF e presidente do Sindicato dos Policiais Federais no Estado de São Paulo (SINPF/SP)
Um ano após o registro do primeiro caso de covid-19, o Brasil ultrapassou a marca de 250 mil mortos pela doença. Muitas vidas foram ceifadas precocemente por um vírus que não escolhe suas vítimas e ataca a todos, independentemente de cor, credo, religião, gênero ou classe social.
São muitas as faces sombrias desta pandemia. Uma delas, indubitavelmente, é o aumento da violência doméstica e do número de casos de feminicídio, crime bárbaro de assassinato de mulheres fruto da misoginia.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o número de feminicídios no primeiro semestre de 2020 cresceu 1,9% em relação a igual período do ano anterior. Também houve aumento no número de chamadas ao telefone 190 para denúncias de violência doméstica.
O isolamento social fez com que as mulheres ficassem mais expostas a agressões físicas, sexuais e psicológicas. Em sua maioria, os agressores pertencem ao círculo social das vítimas, sendo comumente os parceiros ou ex-parceiros. O crime de ódio de gênero nunca foi tão evidente. Mulheres negras são as mais atingidas pela epidemia de violência doméstica.
No geral, o feminicídio é um crime premeditado pelo agressor, que persegue a vítima insistentemente. Uma outra questão, de suma relevância, é o local onde ocorrem os assassinatos, muitas vezes cometidos na própria residência da mulher.
A mecânica dos casos de violência acontece de forma gradativa. Uma determinada situação faz o homem violento desabrochar, resultando na agressão, seja ela psicológica, física, sexual, moral ou patrimonial. Na sequência, o agressor manifesta arrependimento, e afirma que o ato não se repetirá. Mas, passado um tempo, o ciclo recomeça.
A perpetuação da violência até o desfecho do feminicídio é decorrente das falhas encontradas em serviços de atendimentos especializados e outras instituições do Estado, da banalização de casos e experiências anteriores e até mesmo, da culpabilização e aceitação da mulher pela violência sofrida — em virtude do agressor ser alguém conhecido, próximo ou o provedor do lar, deduz-se injusta e equivocadamente a que a vítima foi quem “provocou” ou “se colocou” em uma situação de risco.
Diante do cenário cotidiano e extremo de casos de violência contra a mulher no país, é preciso colocar um ponto final na invisibilidade da desigualdade histórica entre homens e mulheres, especialmente nos campos político, cultural, econômico, e, principalmente, social. Efetivar os direitos e serviços existentes, replicar cenários vitoriosos e enfrentar o racismo institucional também são pontos essenciais para a coibição do feminicídio.
É conveniente recordar um dos principais avanços legislativos como a efetivação da Lei Maria da Penha, sancionada em 7 de agosto de 2006, que cria mecanismos para prevenir e refrear a violência doméstica e familiar contra a mulher em conformidade com a Constituição Federal e os tratados internacionais ratificados pelo Estado brasileiro. E da Lei nº 13.104/15, que tornou o feminicídio um homicídio qualificado e o colocou na lista de crimes hediondos, com penas mais altas, de 12 a 30 anos.
Também veio em boa hora decisão liminar proferida pelo ministro Dias Toffoli, do STF, que suspende a validade do uso da alegação de “legítima defesa da honra” pela defesa de acusados de feminicídio. Na prática, esse argumento — absurdo por sinal — poderia ser usado por homens que assassinam mulheres após serem traídos por elas.
Enormes são os desafios até o desfecho aguardado de crimes cometidos contra mulheres. No entanto, é necessário apontar a responsabilidade da sociedade e do Estado no acionamento dos mecanismos de proteção à mulher para combater mortes evitáveis e acabar com a vulnerabilidade e o desequilíbrio estrutural que custam sofrimento e vidas.
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