Os nossos sentidos são treinados desde muito cedo a lidar com riscos – logo aprendemos que um fósforo prestes a ser aceso ou um leão preso em uma jaula são perigos potenciais e que riscar o fósforo e abrir a jaula configuram riscos com os quais não devemos brincar. Riscos podem ser entendidos como probabilidades de exposição a perigos e, como tal, não há certeza de que se materializarão. Mas compreendê-los e antecipar seus impactos é essencial para que se possa preveni-los. É por isso que governos e empresas buscam na ciência conhecimentos e métodos sofisticados para lidar com os perigos e os riscos complexos que se multiplicam na atualidade.
É isso que faz a Rede de Risco Global, patrocinada pelo Fórum Econômico Mundial, que ocorre anualmente em Davos, na Suíça, quando é divulgado o Relatório Anual de Riscos Globais. Além de apresentar conclusões quanto à dinâmica de riscos em todo o mundo, de ano para ano, o relatório também explora a interconexão desses riscos e como estratégias para sua mitigação podem ser estruturadas. A última edição do Relatório foi muito esperada em função das implicações disruptivas da pandemia de covid-19, que provocou profundas mudanças no ano que passou e deve remodelar o mundo na próxima década. Por isso a versão do relatório de 2021 foi lançada em janeiro com o sugestivo e preocupante mote “Futuro Fraturado”.
O estudo, que captou a percepção de quase 700 especialistas e tomadores de decisão em todo o mundo, destaca a profundidade e a disparidade do impacto da pandemia, apontando como os desafios globais críticos foram exacerbados, ampliando como nunca a necessidade de se abordar riscos de uma forma mais sistêmica e colaborativa.
Embora não seja possível antecipar o impacto final da pandemia de covid-19, o relatório nos conduz a pensar nela como o início de uma profunda reinvenção — dos governos, dos negócios e da sociedade, pois já são claras suas implicações de longo prazo nas economias, nos sistemas de saúde, nas relações de trabalho e nas nossas vidas.
Passado um ano do início da pandemia, já ficou claro que o impacto da crise por ela provocada será maior que o de crises anteriores. O atual infortúnio tem natureza sistêmica, com crises de saúde, econômica e social, ocorrendo em sinergia e atingindo todos no mundo, ao mesmo tempo, por um período prolongado. De acordo com o relatório, os efeitos da pandemia, assim como alguns aspectos da resposta política à crise sanitária, ainda que necessários, aumentaram disparidades de distintas naturezas que já existiam dentro dos países e entre eles. Além disso, prejudicaram desproporcionalmente certos setores e grupos sociais, colocando ainda mais impedimentos no caminho para o mundo alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e do Acordo de Paris.
Entre as ameaças mais imediatas — aquelas que são mais prováveis nos próximos dois anos — se destacam o agravamento de riscos sociais e sanitários, crises de emprego e meios de subsistência, decepção generalizada dos jovens e erosão da coesão social. Os jovens, que têm sido impactados desproporcionalmente pela crise, irão demandar atenção especial para se minimizar o risco de uma geração perdida.
Outros riscos iminentes incluem a concentração do poder digital, a estagnação econômica prolongada e a escalada de danos ambientais em função de práticas insustentáveis toleradas ou justificadas como saídas possíveis da crise. O ambiente de negócios global tende a se tornar mais oneroso e incerto, como resultado de tendências protecionistas e enfraquecimento do multilateralismo, uma vez que alguns Estados tendem a fortalecer a autossuficiência e proteger empregos domésticos.
O fato é que, para lidar com as múltiplas fragilidades reveladas e enfatizadas pela pandemia, as empresas, os negócios e a própria sociedade precisarão se reinventar, em formas mais resilientes e aptas a lidar com perigos e riscos de tal grandeza. A sociedade está se tornando cada vez menos paciente com as falhas de governos, e o tema governança ganha claramente uma nova dimensão. Crises de grande proporção sempre fazem crescer as expectativas pela liderança do Estado, do qual se espera papel de garantidor do equilíbrio, da paz e da resiliência. Após um ano de crise, pessoas prudentes já não ousam desqualificar e diminuir o papel do Estado, ou idolizar praticantes do liberalismo conservador, à la Ronald Reagan, presidente americano que gostava de dizer que a frase mais aterrorizante no seu entendimento era “sou do governo e estou aqui para ajudar”.
Isso porque a crise desnudou como nunca, e em todos os lugares, as funções do Estado que são ignoradas ou pobremente cumpridas, e já produz pressões por uma agenda econômica que focalize as necessidades dos cidadãos e fortaleça a liderança do Estado na produção de valor que beneficie toda a sociedade. A crise está tornando evidente, em todas as partes, a diferença entre boa e má governança nos níveis nacional, estadual e local e cresce na sociedade a compreensão de que governança pode se tornar questão de vida ou de morte. Por isso, os dias de se menosprezar as funções e os papéis críticos do Estado ou de se ignorar e até mesmo zombar das causas que se concentram no bem comum provavelmente passarão — com sorte, para sempre!
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