Pra que mentir
Se tu ainda não tens
Esse dom de saber iludir
Esses versos são do clássico Pra que mentir, composto em 1937 pelo genial Noel Rosa, em parceria com Vadico, sendo um recado para Ceci, a dama de cabaré que foi sua musa e paixão.
Em 1982, em resposta, o igualmente genial Caetano Veloso compôs Dom de iludir, cujos dois primeiros versos são:
Não me venha falar na malícia de
toda mulher
Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é
E finaliza com essas palavras dirigidas a nós, homens:
Você diz a verdade, a verdade é o seu dom
de iludir
Como pode querer que a mulher vá viver
sem mentir
Neste mês dedicado às mulheres, cabem várias reflexões importantes. No campo da representação política, há um ano o Brasil ocupava um vergonhoso 140º lugar no ranking de 191 países com maior participação feminina no Legislativo no levantamento feito pela União Interparlamentar, organização da ONU. Com 14,6% de participação, estamos muito atrás dos quatro primeiros colocados: Ruanda, com 61,3%, Cuba, com 53,2%, Bolívia, com 53,1% e Emirados Árabes Unidos, com 50%. Nosso percentual é menos da metade da média de 31,8% entre países das Américas do Sul, Central e Norte.
Por isso, é fundamental que se apoie as articulações no Congresso Nacional para aprovar uma PEC garantindo a reserva de pelo menos 20% das vagas para mulheres nas casas legislativas municipais, estaduais e federais. Afinal, são mais de 50% da população brasileira! Caso se aprove tal proposta, teremos um significativo avanço, principalmente nas Câmaras Municipais. Os resultados das eleições de 2020 nos 5.568 municípios comprovam: em 948, nos 26 estados, nenhuma mulher foi eleita; e em outros 1.185, apenas uma foi vitoriosa nas urnas.
Já no mundo do entretenimento, temos dados relevantes, com o crescimento exponencial de participação no mercado de artistas jovens como Anitta, Marília Mendonça, Ludmila e as duplas Maira e Maraisa e AnaVitória, mostrando a força de seus talentos em gêneros tão populares quanto distintos.
E Anitta ainda foi a personalidade feminina mais buscada na internet em 2020, com uma média superior a 636 mil buscas. Essa jovem, nascida em família de classe média baixa na zona norte do Rio de Janeiro, transformou-se em uma empresária de estrondoso sucesso, liderando o ranking da revista Exame relativo ao faturamento de artistas com publicidade nas redes sociais com um potencial de retorno médio em torno de R$ 2,1 milhões para cada post.
Além disso, ela tem frequentado cursos e recebido orientação de especialistas para conhecer melhor a realidade política do país de modo a poder utilizar sua influência junto à juventude com quem tem uma comunicação permanente. Não à toa, mês passado, foi escolhida pela revista norte-americana TIME como uma das 100 líderes emergentes do mundo que estão definindo o futuro global.
Porém, essa situação é oposta à vivida por mulheres pertencentes às classes econômicas D e E, nas quais é comum serem abandonadas por seus parceiros, assumindo sozinhas a responsabilidade pelo sustento da família e a criação da prole.
Segundo o IBGE, em 2018 cerca de 12,8 milhões de pessoas viviam em famílias formadas por responsável, sem cônjuge e com filhos até 14 anos, compreendendo 7,4% da população brasileira. Desse total, em 90,3% dos domicílios a responsável era mulher. Quando se olha para a situação de pobreza e extrema pobreza, as famílias formadas por mulheres sem cônjuges e com filhos menores de 14 anos correspondem a 20,6% do total da população que vive em extrema pobreza no país.
Por fim, são indiscutíveis os danos causados pelo machismo estrutural presente em todas as classes sociais. Em 2020, segundo o Ministério da Mulher, foram registradas 105.821 denúncias de violência contra a mulher no Ligue 180 e no Disque 100. A esses números assustadores somam-se os casos de feminicídio. Segundo a Rede de Observatório da Segurança, foram 1.823 apenas nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Ceará e Pernambuco. Uma média de cinco por dia!
E é de São Paulo o exemplo mais recente de como o machismo estrutural está longe de ser superado. O Conselho de Ética da Alesp resolveu ignorar a gravidade do assédio sexual e moral cometido pelo deputado Fernando Cury contra a deputada Isa Penna em imagens que foram divulgadas amplamente. No lugar de recomendar a indispensável cassação do mandato, aplicaram uma suspensão por meros 119 dias, pode-se dizer que deram férias a ele. Uma vergonha!!
Passados quase 30 anos do lançamento de sua obra, os versos de Caetano continuam atuais.
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