Por GERSON BRISOLARA — Jornalista com atuação em comunicação social e organizacional, educação corporativa e assessoria na imprensa gaúcha
Um assunto sempre me deixou intrigado ao acompanhar as competições esportivas nos meios de comunicação: o fato de eu nunca ter visto um negro atuando em qualquer seleção esportiva argentina, seja em copa do mundo seja em jogos pan-americanos ou olímpicos. Houve escravidão em toda a América Latina. Basta ver atletas e artistas brasileiros, uruguaios, colombianos, equatorianos, venezuelanos, peruanos etc. O que, afinal, aconteceu com os negros da Argentina?
Jorge Lanata é um importante jornalista argentino, fundador do diário Página/12 e autor de Argentinos (Ed. Argentina), belíssima história do país em dois volumes, lançada em 2002. Na obra, ele refere-se aos negros como “los primeiros desaparecidos”, referência aos mortos pela ditadura militar dos idos de 1970 e 1980. E traz dados mais antigos: no censo de 1778, 30% da população tinha origem africana. A proporção se mantém no censo de 1810, cai para 25% em 1838. Em 1887, repentinamente, compõe menos de 2%. Mas bem no início, há depoimentos de que a proporção de negros e brancos em Buenos Aires chegou a ser de 5 para 1. Segundo recente estudo genético autossômico de 2012, a composição da Argentina tem ascendência europeia (65%), indígena (31%) e africana (4%).
Durante seu primeiro século, a capital argentina sobreviveu à custa do comércio negreiro. Do século 16 até a primeira metade do 17, a coroa espanhola drenava o ouro e a prata na região do Potosí, na atual Bolívia. Foi esse negócio que deu nome ao rio da Prata — foram principalmente as mãos negras que tiraram das minas subterrâneas os metais que sustentaram a Europa. Os negros escravizados de Potosí vinham, principalmente, de Angola. Eram negociados pelos peruleiros (comerciantes do Brasil que tratavam com os espanhóis do Peru, no século 18), que faziam a rota Potosí-Buenos Aires-Rio-Luanda.
O Rio de Janeiro, de modo semelhante, era dependente do tráfico. No Cais do Valongo chegavam os escravizados, pagos, em geral, não com dinheiro, mas com açúcar, cachaça, mandioca e tabaco, que serviam de moeda de troca na África. Muitos eram então transportados para Buenos Aires. E enviados rio Prata acima até as minas. A relação na rota de tráfico entre Rio e Buenos Aires era tão próxima que, quando veio a separação da União Ibérica, os cariocas chegaram a sugerir aos “hermanos” que se bandeassem para o lado português.
Como no Brasil, todo o serviço, doméstico ou não, nos séculos 17 e 18 na Argentina era feito por mão de obra negra escravizada. Então desapareceram, e a história local ensinada nas escolas se cala sobre o tema. Francisco Morrone, autor de Los negros en el ejército: declinación demográfica e disolución, é um dos historiadores que tenta recuperar o que houve. Segundo Morrone, uma das explicações é a prática de casamentos mistos que, lentamente, clarearam a pele dos descendentes.
A abolição da escravatura na Argentina começou em 1813, sendo confirmada pela Constituição de 1853 — bem antes da brasileira. Ao longo do século 19 todo, o país se meteu em guerras, uma após a outra. Por todo esse período belicista, a Argentina pôs seus negros na linha de frente dos exércitos, eram os primeiros a levar tiros, às vezes de espingardas — muitas vezes servindo de isca para o inimigo.
O golpe final foi a grande epidemia de febre amarela de 1871, que se abateu sobre bairros afastados e de extrema pobreza de Buenos Aires (guetos), para onde os negros que sobraram foram transferidos.
Depois, no começo do século 20, assim como no Brasil, houve uma enorme imigração europeia, principalmente de italianos, que marcaram o sotaque portenho como marcaram cá o paulistano. Devido a essa imigração em massa, há um ditado que diz que “os argentinos são italianos que falam espanhol e que pensam que são ingleses”. A diferença é que, a essa altura, faltou melanina para escurecer a pele da população restante.
De acordo com alguns historiadores, o efeito mais duradouro da influência africana na Argentina aconteceu na cultura artística musical, o tango, que fazia parte das cerimônias religiosas dos cativos conhecidas como tangós. Eram mestiços os primeiros compositores de tangos.
A Argentina teve, sim, presença negra, assim como o Brasil e, em certo momento, na mesma proporção. Logo após a independência, aboliu o regime escravista e pôr em marcha uma política de branqueamento da população. Algo equivalente a genocídio. Diga-se de passagem, na República Velha, isto foi motivo de inveja por parte do governo brasileiro. Nessa história, não há inocentes.
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