Visão do Correio

Democracia e liberdade de expressão

''É preciso estar atento e forte, como na música de Caetano, para reagir duramente às ameaças ao estado democrático de direito. O discurso de ódio, totalitário, tanto à direita quanto à esquerda, fomenta o caldo de insatisfação que, mais adiante, pode animar autoritários a tentar pôr em prática projetos golpistas''

Um dos mais influentes pensadores do século 20, o filósofo austríaco Karl Popper é autor da mais arrojada obra já escrita em defesa da democracia: o livro A sociedade aberta e seus inimigos, dividido em dois volumes, publicado em 1945. Neles, sustenta Popper, os regimes democráticos mais resilientes são aqueles em que todos os poderes políticos são claramente limitados pela lei; em que impera a liberdade de expressão; e nos quais os cidadãos, como indivíduos ou pessoas, têm precedência sobre os governos. A evocação a Popper é um pretexto para analisar o precedente aberto pelo Legislativo brasileiro, no caso da prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ).


Em todo o episódio, não havia a mais remota dúvida de que Silveira havia ido além da imunidade parlamentar quando, em vídeo publicado na internet, desfere ameaças a ministros do Supremo Tribunal Federal e ataque à democracia, ao defender um novo AI-5, o mais perverso ato institucional da ditadura militar que se instaurou no país em 1964 e durou 21 anos. Estava claro que o parlamentar precisava ser exemplarmente punido por isso. E essa possibilidade uniu um fragmentado STF. Mas existia, de fato, o “permanente” flagrante em delito decretado, por unanimidade, pelos 11 ministros do Supremo? Muitos juristas entenderam que não.


Então, voltemos à Câmara dos Deputados. Dos três poderes, o Legislativo é, de longe, o mais identificado com o cidadão, a mais direta representação da sociedade no sistema de freios e contrapesos de nossa democracia. Era, portanto, como estabelece a Constituição no caso de prisão de um parlamentar, a instituição incumbida de, à luz da letra fria da legislação, avaliar a decisão do Supremo. Na sexta-feira, sob forte pressão e muita expectativa, os deputados referendaram a decisão da mais alta corte de Justiça do país, num claro basta à escalada de ataques às instituições e à democracia.


Mas resta a preocupação: e se magistrados de instâncias inferiores, inspirados na decisão do Supremo, começarem a desferir ordens de prisão “em flagrante” em razão de algum processo contra vídeos que alguém postou numa rede social hoje, há uma semana ou cinco anos atrás? É esse o perigo. Não à toa, nas sociedades abertas, o direito de informar e de expressar abertamente ideias é tão sagrado. Dentro, claro, dos limites estabelecidos pela lei para coibir excessos. E, como ressaltou Popper, esse direito não pode ser pretexto para ataques à democracia.


É preciso estar atento e forte, como na música de Caetano, para reagir duramente às ameaças ao estado democrático de direito. O discurso de ódio, totalitário, tanto à direita quanto à esquerda, fomenta o caldo de insatisfação que, mais adiante, pode animar autoritários a tentar pôr em prática projetos golpistas. Nem sempre, no entanto, esses ataques são óbvios. Muitas vezes, são tramados justamente por quem tem a incumbência de zelar pela lei. Proteger a democracia de seus inimigos é uma luta permanente, um combate no qual não existe trégua.