A extinta TV Tupi, emissora dos Diários Associados, vivia grande momento em 1971, quando apresentou um especial que faz parte da história da música popular brasileira, e que marcou o encontro de João Gilberto, Caetano Veloso e Gal Costa. Chega de saudade, o título do show, indiretamente fazia alusão à ausência no Brasil de um dos criadores da Bossa Nova, que à época estava radicado nos Estados Unidos; e de um dos líderes da Tropicália, exilado em Londres, por determinação da Ditadura Militar.
Convidado pela direção da Tupi, João teria condicionado a participação no programa, caso pudesse ter Caetano ao seu lado. Ele próprio fez o contato com o discípulo. De acordo com o cantor e compositor baiano, nascido em Santo Amaro da Purificação, em relato no livro Verdade Tropical, o conterrâneo — natural de Juazeiro — o convenceu a voltar ao país ao afirmar “é Deus quem está me pedindo para eu lhe chamar. Você vai saltar do avião no Rio de Janeiro e todas as pessoas vão sorrir para você. Você vai ver como o Brasil te ama”. Ainda na autobiografia, Caetano diz: “Não me dava o direito de descrer da palavra de João. Ele sempre foi meu herói”.
Gal, a musa tropicalista, que no Brasil era uma espécie de porta-voz de Caetano e Gilberto Gil, companheiros do revolucionário movimento musical, também tinha forte ligação com João, a quem tomou como principal referência, ao dar início à carreira artística, em meados da década de 1960. Portanto, nada mais natural que viesse a ser também convidada para participar do espetáculo. A gravação, que ocorreu no estúdio da Tupi, no bairro do Sumaré, em São Paulo, feita em dois dias, teve seis horas de duração e se transformou num especial de 1h30. Havia a possibilidade de ser registrado num LP — o que não aconteceu por conta do exercício de preciosidade de João Gilberto. O veto era algo permitido em contrato.
Desde então, o material estava indisponível. O artista plástico Ion de Freitas Filho, que sempre foi fã de João, havia gravado o show direto da tevê numa fita de rolo. Digitalizado, esse importantíssimo registro documental, 50 anos depois, acaba de ser disponibilizado no canal Esqueleto Lavrador, no YouTube, com boa qualidade, para audição gratuita. O áudio, com canções, interpretadas ao vivo, foi organizado pelo produtor cultural Pedro Fontes.
No repertório, há, por exemplo, a interpretação — sempre impecável — de João Gilberto para Chega de saudade (Tom Jobim e Vinicius de Moraes) e Retrato em branco e preto (Tom Jobim e Chico Buarque); Caetano Veloso cantando Asa Branca (como fizera no LP Transa, gravado no mesmo ano em Londres), Fruta Gogóia, do folclore baiano, e A tua presença, de autoria dele. Já Gal Costa brilha em Baby (Caetano Veloso) e Falsa baiana (Geraldo Pereira). Os três juntam as vozes em Saudade da Bahia e Você já foi à Bahia?, numa clara homenagem a Dorival Caymmi. Simplesmente, imperdível!