JELSON OLIVEIRA
Filósofo e professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR)
O filósofo alemão Hans Jonas escreveu que a tecnologia “tornou-se o que Napoleão pensava a respeito da política: um destino”. Com essa frase ele quis fazer referência à onipresença da tecnologia nos nossos dias, tanto no sentido da sua dinâmica formal (seus poderes, processos e leis de movimento próprias) quanto de seu conteúdo substancial (os dispositivos e todas as coisas que aporta para o convívio humano e o negócio da vida). Nunca, como agora, nesses tempos de pandemia, essa afirmação foi tão evidente. Estamos, como nunca, conectados pela internet, pessoas e coisas partícipes da grande rede que gerencia nossas horas, absolve ou culpa nossas ações, sistematiza e compartilha nossas experiências de mundo.
Pensemos, mais especificamente, nas tecnologias de informação, que se interpõe sobre a lei do isolamento e fazem a gente superar a quarentena com inúmeras possibilidades de contato — uma palavra que, desde o latim, significa “toque entre coisas ou pessoas, encontro, convívio, intercomunicação”. Eis o paradoxo: aquilo que distanciava, gera também aproximação. Se antes essas tecnologias acabavam por nos distanciar dos outros, porque levavam ao isolamento pelo seu uso excessivo (um perigo que deve ainda estar no nosso horizonte), agora, elas contribuem para a superação das limitações com a possibilidade do encontro virtual entre as pessoas.
Como professores, estamos descobrindo inúmeras ferramentas de aulas remotas, chats, questionários e votações on-line, além de uma miríade de instrumentos curiosos e úteis para dinamizar as aulas que estão sendo realizadas de forma não presencial; impressoras 3D estão sendo usadas para imprimir máscaras para os profissionais da saúde; professores de educação física gravam vídeos com exercícios para fazer em casa, de onde podemos pedir alimentos e qualquer outra coisa, por via de aplicativos de entrega e com pagamentos por cartões.
Com nossos smartphones, popularizados nos últimos anos à exacerbação, podemos conversar com pessoas ao redor do mundo e, mesmo com um wi-fi precário em termos de velocidade, ocupamos nosso tempo com filmes em formato streaming, com leituras de livros digitais e com programação de canais de TV por assinatura (na maior parte, agora, abertos). E com tecnologia que somamos, estarrecidos, os números diários de infectados e mortos, com ela também contamos para a descoberta de uma vacina o mais breve possível. É por uma chamada de vídeo realizada por um médico que muitos familiares se despedem de seus entes queridos e até acompanham a sua morte. Em Curitiba, um aplicativo identifica pessoas com sintomas, oferece informações e indicações de como agir e ajuda o governo a ter um diagnóstico mais claro do estágio da doença na população. Em vários lugares, são disparadas mensagens informativas que ajudam a contenção do vírus. Psicólogos atendem pacientes a distância, médicos acompanham e diagnosticam pacientes pelo celular. Cientistas de universidades brasileiras sequenciam o genoma do vírus com ajuda da cibernética. Isso tudo, só para ficar com alguns exemplos mais diretamente ligados à nossa vida cotidiana nesses dias.
Esses exemplos mostram que, nunca como agora, a tecnologia pode ser reconhecida como um meio — e não como um fim em si mesmo. E, nunca como agora, é possível identificar a sua função social, o seu potencial transformador e o quanto ela pode ser um bem para a sociedade tal reconhecimento passa, necessariamente, pela evidência de que a tecnologia não é boa nem má em si mesma: ao contrário, a ambiguidade ética é seu caráter próprio. A mesma tecnologia que produz bem, em alguns momentos coloca em risco a continuidade da vida. Os mesmos motores que geraram a crise ambiental, a bomba atômica, os experimentos com seres humanos nos campos de concentração, podem possibilitar um avanço desenfreado do vírus, também podem contribuir para o seu controle.
Tudo isso depende do uso responsável dos novos poderes. Foi Hans Jonas que também chamou atenção para isso, ao formular o seu princípio de responsabilidade. Sem deixar de reconhecer os perigos e as ameaças contidas na tecnologia, Jonas insistiu no seu uso ético, orientado pela responsabilidade e de acordo com os interesses da vida. Entre as características que transformam a tecnologia em um problema ético, Jonas aponta o que ele chama de “emergência da questão metafísica”, para expressar o fato de que, diante dos novos poderes, é preciso perguntar-se sobre porque devemos preservar o homem tal como ele tem sido até agora e, mais ainda, por que deve haver vida ainda no futuro. Todos os esforços contra o coronavírus mostram a evidência da resposta: a vida é boa e todos merecem vivê-la. A tecnologia deve estar a seu serviço, portanto, como um meio para sua garantia. Com responsabilidade e com afeto.