O impeachment é sempre um processo traumático de interrupção de um governo escolhido democraticamente. É um movimento de muitos interesses, no qual o detalhe jurídico, aos olhos do eleitor leigo, está muito mais no processo do que na imputação do crime de responsabilidade.
Com sua previsão constitucional, o impedimento é parte do jogo. Se for seguido o processo legal, deve ser acatado. Alguns podem até achar que é injusto, mas, respeitado o rito, não pode ser considerado ilegal, ou até mesmo um golpe. Apesar de a Constituição trazer o amparo para o enquadramento e o rito processual, a base dessa decisão é totalmente política. Se perder o apoio político, o mandatário será afastado pelos representantes do povo.
Nos últimos dias, esse tema tem sido pauta nacional. O debate sobre o impedimento do presidente da República está colocado. Alguns entendem que as condições estão presentes; outros, que não há ambiente político ou condições objetivas para essa decisão. Mas todos os debates giram em torno do olhar político do Planalto Central para o Brasil. Na verdade, as ruas definem os rumos. Em uma democracia, presidente com apoio popular tem a proteção política para se manter no cargo. O povo é quem decide a sua permanência, ou não, por meio da pressão sobre seus representantes.
A manipulação da população para a pressão pelo impeachment é parte do jogo político e sempre está presente nessa decisão. No passado, quem detinha o poder da formação de opinião era quem estimulava a sociedade a dar voz às ruas e fazer ecoar nos gabinetes de Brasília a vontade do povo pela interrupção de um mandato. Esses formadores de opinião centralizavam o poder, definindo o momento da mobilização do povo, aproveitando possíveis fragilidades na popularidade do governo. A pressão popular passou a ser arma que era disparada por poucos que detinham os canais para a mobilização popular.
Mas, o mundo contemporâneo trouxe a novidade dos canais digitais, que revolucionaram as relações humanas e, como consequência, minaram (ou atenuaram) o controle da ação dos formadores de opinião. A informação chega mais rápida e de forma mais direta ao cidadão. Quanto mais alinhamento entre a pauta colocada e a necessidade e interesse do povo, maior será o engajamento e sua repercussão. Quanto mais conectividade com a sociedade, maior o poder de mobilização. Nem sempre o início de uma mobilização popular finaliza como planejada, porque, nos canais digitais, o povo comandará a mobilização conforme seu próprio interesse, apoiando ou cancelando os protagonistas e as pautas debatidas. Esse é o chamado “novo poder”, assim bem definido por Henry Timms e Jeremy Heimans no livro de mesmo nome.
Isso não quer dizer que a sociedade esteja livre da manipulação no mundo digital. Ao contrário, a inteligência artificial e a psicologia comportamental foram utilizadas para a mudança no comportamento das pessoas, como comprovado pelo trabalho da empresa britânica Cambridge Analytica. Essa manipulação produziu a grande mudança político-ideológica no mundo, fato também bem visível aqui no Brasil. Foram criados exércitos ideológicos nesse mundo digital, que, muitas vezes, sem perceber, assim como gados nas fazendas, obedecem seus peões cegamente e muitas vezes inconscientemente.
Em 1979, Zé Ramalho traduzia em acordes a definição dessa manipulação popular com a música Admirável Gado Novo. Nela, o compositor anuncia a “vida de gado, povo marcado êh, povo feliz!” Quando se agrupa o gado na fazenda, ele passa a ter como referência o fazendeiro que os controla e passa a viver uma falsa ideia de felicidade, de satisfação. O gado marcado traduz a lógica do povo alienado, manipulado, sob qualquer bandeira, sob a cor ideológica de preferência, sempre com o mantra “do nós contra eles”. Se, antes, a liderança popular era construída por formadores de opinião, hoje, a forma de manipulação está na inteligência artificial e na conectividade com o povo. É assim que o gado marcado de Zé Ramalho, sendo ele de que cor for, responderá ao estímulo da mobilização nacional que reflete o novo poder.
Quem define a possibilidade de um impeachment sempre foi, e sempre será, o povo, com sua pressão. É ele que condena ou protege seu líder, exercendo o grito das ruas. Mas, esse povo, assim como o gado de Zé Ramalho, pode estar a serviço do interesse de outros, sem que ele mesmo perceba. Um gado marcado poderá ser a massa de manobra do interesse de poucos. Assim, quanto mais informação tiver o povo, maior a possibilidade de o “novo poder” das mídias digitais fazer a vontade popular vencer a manobra da inteligência artificial, mostrando que a cancela da fazenda pode ser aberta e fazer o gado livre para pensar, agir e decidir.
Zé Ramalho já cantava, nessa mesma música, a esperança de um gado livre, dizendo que o povo sonha com melhores tempos, fora da cancela. E, no final de tudo, dizia o cantor, esperam nova possibilidade de ver esse mundo se acabar. O desgaste de “dar muito mais que receber”, como diz a canção, pode fazer o gado se rebelar. É o sonho do encerramento de um ciclo para o início de um novo mundo. É nesse sentimento que o povo vai decidir se deve ou não apoiar a interrupção de um mandato. Se o gado souber que ele pode mudar a sua história, poderá ser o dono da fazenda e, de forma consciente, decidir os rumos da sociedade, com a manutenção ou impedimento do governo que elegeu.