Opinião

Só levanta para ensinar quem sentou para aprender

Raio Gomes, jornalista, mulher de axé, mãe, integrante da irmandade Pretas Candangas (AMNB)

Há uma geração de militantes negros jovens que já nasceu empoderada. Cabelo natural, discurso na ponta da língua, citações de autores e uma “prática” militante que tem pouco de prática mesmo. Não fui eu quem disse isso. A tal da “geração tombamento” tem sido discutida há uns bons anos — o termo já deve até ter saído de moda.

A minha geração cresceu aprendendo a utilizar redes sociais, se expressar pelo Twitter, subir hashtags, fazer campanhas sem a necessidade do olho no olho, de estratégias ensinadas pelos mais velhos e disputando tudo no “digital”, tem demonstrado, em minha avaliação, dois grandes problemas. O primeiro é a baixa capacidade de traduzir em práticas os conhecimentos adquiridos na teoria, e o segundo é a dificuldade de ouvir, visto que as redes sociais e suas bolhas favorecem muito pouco construir diálogos. De fato, quem ouve o que a outra parte diz?

Após quase um ano de turbulências de toda ordem causadas pela pandemia, vivemos um período em que a presença em telas se multiplicou. Estamos mais presentes na internet, nos celulares, e grandes temas ganharam ainda mais eco e repercussão, notadamente os casos de racismo e violência.

Neste cenário, chegamos à 21ª edição do Big brother Brasil, o reality show mais assistido do país, que, este ano, tem a maior presença de participantes não brancos vista até aqui. Representatividade! Ocupação de espaços! Um verdadeiro frisson tomou conta das redes sociais quando do anúncio destes participantes. Mal se sabia o que estava por vir.

A máxima “não existe almoço grátis” não poderia ser mais verdadeira. Será mesmo que a gente poderia esperar da emissora que, por décadas a fio ajuda a propagar estereótipos racistas, que a tal representatividade viria de forma pura e simples? Sem letras miúdas?

Com menos de duas semanas de programa o “núcleo negro” já protagonizou cenas de gerar ansiedade em qualquer pessoa negra consciente. Homem negro sendo hostilizado e estereotipado como agressivo, “drogado”, violento. Evangelização e discurso punitivista sendo aclamado; mulher negra encarnando a megera, proibindo o outro de comer na mesma mesa que ela e o coletivo da casa toda ficando calado diante dos abusos.

Não é o pacote perfeito? Com direito a reforço positivo, ao vivo, por parte do apresentador, o tal “experimento social” vem sendo sutilmente manipulado para acreditar que está agindo da forma correta, sob a liderança da “negra empoderada”.

Tudo isso adoecendo, lá dentro e aqui fora, a mente de quem tem lidado da forma que pode com quase um ano de pandemia, mais de 220 mil mortos, perda de empregos, de família, amigos e todos os danos psicológicos possíveis causados pelo distanciamento social.

“Mas é fevereiro, no carnaval a gente esquece de tudo!” Opa, mas este ano o carnaval foi cancelado. A pandemia ainda não acabou. Não temos exatamente muito a comemorar.

Os blocos afros não vão desfilar em Salvador, os maracatus e afoxés não vão sair em Olinda, nada de desfiles das Escolas de Samba no Rio de Janeiro e São Paulo, e os feriados e pontos facultativos já estão cancelados na maioria das capitais do país. Pela preservação da vida, e da continuidade das existências humana que ainda sejam possíveis salvar — mesmo a contragosto dos governantes, estamos ainda com parte das atividades em suspenso no país.

Mas, ainda assim, é carnaval. E num tempo em que a natureza nos convida a refletir, ainda que junto às telas, podemos aproveitar o momento para olhar para trás e entender como fazer melhor para seguir adiante. Para contribuir com esta missão, existem muitas e muitos.

Por agora, indico o primoroso trabalho de preservação da memória feito pela Rede de Historiadorxs Negrxs, Portal Geledés e Acervo Cultne, que têm disponibilizado semanalmente artigos e vídeos trazendo parte das Nossas Histórias que foram negadas a nós mesmos.

Como se fosse pouco, o Acervo Cultne e todo o seu trabalho de transmissão de legado, ainda vai salvar o nosso pré-carnaval! Com três dias de programação de 8 a 10 de fevereiro, Filó Filho e seu time apresentam a FliSamba, com programação on-line e gratuita com lançamentos de Altay Veloso, Xandra Lia, Nelson Maca, feira literária e homenagens a Martinho da Vila, Tia Gessy, Tia Surica, Helena Theodoro e o já ancestral Djalma Sabiá.

Oportunidade de sair do frisson adoecedor de reality show com espetáculo de cancelamento de gente negra e ouvir nossas/os mais velhas/os e mais novas/os que sobrevivem de fazer samba, literatura e a cultura desse país, a despeito desse país.