ARTIGO

Sempre cabe mais um!

ORLANDO THOMÉ CORDEIRO - Consultor em estratégia
postado em 26/02/2021 06:00

“Um passinho à frente, por favor.” Quem andou de ônibus na época em que existiam cobradores certamente se lembra desse pedido. Os ônibus, assim como hoje, andavam lotados, mas a ideia é que sempre cabia mais gente. E quando necessário, o motorista ainda dava a famosa freada de arrumação.
Tão desconfortável como a situação descrita acima é a realidade partidária brasileira. Atualmente, são 35 partidos registrados e aptos a disputar as eleições. E existe o inacreditável número de 77 novos pedidos de registro tramitando no TSE! Se todos forem aprovados chegaremos a 112 agremiações!

Em 2017, foi aprovada pelo Congresso Nacional a chamada cláusula de desempenho, mais popularmente conhecida como cláusula de barreira, que estabeleceu exigências vinculadas à votação obtida pelos partidos nas eleições gerais, segundo os critérios descritos a seguir. Nas eleições de 2018, piso de 1,5% dos votos válidos nas eleições para a Câmara dos Deputados, distribuídos em pelo menos nove unidades da federação, com um mínimo de 1% dos votos válidos em cada uma delas, ou ainda ter eleito nove parlamentares federais, distribuídos em um mínimo de nove unidades da federação.

Nos pleitos seguintes, mantida a exigência de distribuição por nove unidades da federação, o piso vai crescendo: em 2022, sobe para 2% dos votos válidos, com um mínimo de 1% dos votos em cada estado, ou conseguir eleger 11 parlamentares; em 2026, vai para 2,5%, com um mínimo de 1,5% de votos em cada estado, ou eleger um mínimo de 13 deputados; em 2030, piso de 3% dos votos válidos, com 2% dos votos válidos em cada estado, ou conseguir eleger pelo menos 15 deputados.

Graças a essa legislação, com base nos resultados das eleições de 2018, dos 35 existentes, 23 receberam recursos do Fundo Partidário em 2020, conforme dados atualizados pelo TSE em janeiro deste ano. Porém, como no ditado, nada é tão bom que dure para sempre ou tão ruim que nunca acabe. Está em curso uma iniciativa do presidente da Câmara Federal, deputado Arthur Lira (PP/AL), que criará uma comissão para analisar as mudanças na legislação em vigor.

Sabe-se que pretendem mudar a forma de eleição para cargos no Legislativo e também afrouxar mecanismos como os descritos acima, responsáveis por reduzir o número de legendas na Casa de 30 para 24 nos últimos dois anos. Há, inclusive, parlamentares que pretendem restabelecer a possibilidade de coligação partidária nas disputas para o legislativo, proibidas desde o pleito municipal de 2020.
Posto esse cenário, cabe uma pergunta: qual o interesse na criação de um partido político? Bem, em tese, o movimento de pessoas com vistas à criação passa por perceberem uma identidade de ideias, propostas e valores entre elas para, consequentemente, disputarem o poder político via processo eleitoral. Porém, até mesmo quem seja movido pela absoluta ingenuidade não consegue acreditar que haja na sociedade brasileira 112 ideologias ou visões programáticas diferentes. Fala sério, né?

Logo, a resposta a essa pergunta quase pueril está presente nas limitações impostas pela legislação em vigor: fundo partidário e tempo de propaganda em TV e rádio. Em outras palavras, o que move essa enxurrada de agremiações é a percepção de que constituir partido político pode ser um grande negócio.
Na trilha desse “negócio” surgem, por exemplo, as já conhecidas “candidaturas laranjas”, registradas apenas para possibilitar a circulação de dinheiro de um lado para o outro. Ou, ainda, a utilização de recursos do fundo partidário para viabilizar benesses a dirigentes partidários.

A vitória acachapante dos atuais presidentes da Câmara e do Senado foi resultado de um conjunto de interesses muito além do posicionamento em relação ao governo Bolsonaro. Boa parte dos votos por eles recebida pode ser explicada pelo compromisso em atender diversas reivindicações do chamado “baixo clero”, entre as quais certamente se encontra essa proposta de mudança na lei eleitoral.

Infelizmente, uma pauta como essa ainda não é capaz de gerar a atenção da maioria da sociedade, ainda mais em tempos de pandemia e crise econômica aguda. Porém, não se pode permitir que tais mudanças sejam aprovadas sem que haja uma ampla discussão para que ultrasse os limites do parlamento. É imprescindível uma mobilização social para impedir tamanho retrocesso! Caso contrário, no futuro nem mesmo uma freada de arrumação vai resolver. Vai vendo...

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