POLÍTICA

A Lei da Ficha Limpa precisa ser revista

''É preciso reduzir o debate ao que ele é: uma questão técnica. É muito rigorosa a previsão da inelegibilidade por oito anos! Ela é pacificamente aplicada na condenação. Não acontecerá qualquer fragilização da Lei da Ficha Limpa ao corrigir sua redação, mas, sim, o necessário aperfeiçoamento do Regime das Inelegibilidades''

» MILTON DE MORAES TERRA, advogado especialista em direito eleitoral e partidário, membro titular da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/SP e vice-presidente do Instituto de Direito Político e Eleitoral (IDPE)

 

Mais de 90 prefeitos eleitos, em 2020, foram impedidos de tomar posse em 1º de janeiro. A Justiça Eleitoral ainda julga recursos dos advogados para diplomar, ou não, os candidatos e resolver se assumirão os mandatos. Cada caso é um, tendo suas peculiaridades. No entanto, o que complicou para todos foi o debate sobre o possível esvaziamento da Lei da Ficha Limpa, se o Supremo Tribunal Federal (STF), na volta do recesso, mantiver a decisão liminar concedida pelo ministro Kassio Nunes Marques em Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT). Este artigo vem retomar o assunto para esclarecer os leitores e contribuir para o que afeta nosso processo eleitoral.

Em sua Adin, o PDT pede que se desconsidere “o final da redação da alínea ‘e’, do inciso I, artigo 1º, da Lei Complementar nº 64/1990”, com a redação dada pela Lei da Ficha Limpa. Esse trecho traz flagrante violação aos artigos 5º, caput, LIV e § 2º, 14, § 9º e 15, caput, da Constituição Federal, ao artigo 23, “2”, do Pacto de São José da Costa Rica. Fere princípios constitucionais da segurança jurídica e da proporcionalidade. Na alínea “e” da Lei das Inelegibilidades, está escrito que ficam inelegíveis “os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena”.

O que parece difícil pode ser simples. Se o impedimento começa “desde a condenação” e dura até o prazo de oito anos após o cumprimento da pena, evidentemente, está errado em uma mesma frase colocar, também, o trecho “após o cumprimento da pena”. É porque a condenação e o cumprimento da sentença são coisas bem diferentes. Após a condenação, cabem recursos, e o cumprimento da pena poderá acontecer somente muitos anos depois.

Na ponta do lápis, aplicando esse raciocínio a uma pessoa condenada em decisão com trânsito em julgado em 2010: cumpriu à Justiça Eleitoral negar-lhe o registro de candidatura até 2018. Se a pessoa, como tem direito, pleitear revisão da condenação na Justiça e o resultado final do processo e da pena se cumprir em 2013, sendo arquivado em 2014, será absolutamente inconstitucional contar o prazo de inelegibilidade a partir daí. Não pode ser aplicada a inelegibilidade até 2022, pois serão quatro anos a mais do que prevê a Lei da Ficha Limpa.

É preciso reduzir o debate ao que ele é: uma questão técnica. É muito rigorosa a previsão da inelegibilidade por oito anos! Ela é pacificamente aplicada na condenação. Não acontecerá qualquer fragilização da Lei da Ficha Limpa ao corrigir sua redação, mas, sim, o necessário aperfeiçoamento do Regime das Inelegibilidades.

Esse exemplo que cito de uma condenação no ano de 2010 aplica-se ao prefeito de Pinhalzinho, no interior de São Paulo, Tião Zanardi (PSC). Ele já cumpriu a inelegibilidade ao final de 2018. Não tem mais esse impedimento a ser cumprido. Tião Zanardi foi citado em inúmeras publicações do país por conta desse debate sem ter cometido crime contra a administração pública ou qualquer ato de corrupção. Respondeu a um processo e perdeu a causa quanto a cumprir ou não a Lei de Parcelamento do Solo. Não é ficha suja.

Vamos supor que tenhamos eleições suplementares, em março — elas poderão ser convocadas para resolver questões como as desses mais de 90 municípios —, Tião Zanardi e todos na situação dele estarão aptos a candidatarem-se, pois a liminar de Nunes Marques está vigente e a Justiça Eleitoral não poderá negar-lhes registros.

Então, qual teria sido uma boa solução para o que está acontecendo? O TSE, em vez de ter suspendido as posses dos prefeitos eleitos, acataria a liminar de Nunes Marques. Eles estariam trabalhando desde 1º de janeiro e cada caso concreto estaria sendo analisado com a devida atenção pela Corte. Na hipótese de a liminar de Nunes Marques cair, futuramente, por decisão do plenário, o prefeito que estivesse dependendo disso seria afastado. Os custos para a sociedade e para a Justiça Eleitoral, ao realizarem somente eleições suplementares totalmente necessárias, seriam bem menores.

Lembrando que, nas cidades pequenas, vereadores ganham muito pouco e, geralmente, desempenham outras atividades econômicas para sustentarem-se. Evidentemente, não deixarão de trabalhar em seus próprios negócios para dedicarem-se completamente à cidade, como o candidato que se preparou para ser prefeito. Confiamos que os problemas venham a ser superados e que os interesses dos cidadãos prevaleçam.