Desconsiderando momentaneamente o que há de extraordinário e particular na conjuntura global e nacional, há um elemento pedagógico que não pode ser ignorado, pois, do contrário, perderíamos uma oportunidade coletiva de amadurecimento e compreensão sobre o maior dilema brasileiro: o gasto público de má qualidade. O elemento pedagógico deriva do desafio explicitado recentemente — em algum momento haverá vacinas para parte da população, mas há o risco de que não haja seringas. Essa situação, a despeito de soar irreal para alguns, é sentida e compreendida diariamente quando vivemos os serviços públicos prestados por municípios, estados e União.
O dilema da “vacina sem seringa” explica o maior desarranjo institucional brasileiro: a responsabilidade pelas decisões sobre gastos públicos é, em essência, meramente formal no Poder Executivo. Ora, se a responsabilidade não fosse meramente formal, como poderíamos explicar que, em muitas realidades, até existe o serviço de coleta seletiva de resíduos sólidos, mas falta um aterro sanitário regular; podemos até ter livros didáticos, mas não há alimentação nas escolas; podemos até conseguir comprar um tomógrafo, mas não há manutenção; podemos até construir uma ponte, mas ela liga nada a lugar nenhum; podemos até dizer que há uma rede coletora de esgoto, mas não há estação de tratamento; podemos até ter remédios no estoque de hospitais públicos, mas eles estão vencidos, assim como possivelmente estarão em breve vários testes para o diagnóstico do novo coronavírus. Os exemplos tendem ao infinito.
A maior falha do Estado brasileiro é ser um mau gastador de recursos públicos, um integrador de fornecedores preguiçoso e sem compromisso com o resultado. Enquanto não for amplamente percebido que implantar uma política pública é tão nobre quanto concebê-la — e que implantar significa integrar uma cadeia de suprimentos privada e complexa — não será superado o paradigma da baixa qualidade do gasto público no país.
E, o mais incrível, é que há modalidades de contratação que têm, em sua essência, a preocupação com a boa integração de cadeias de suprimentos e que estão ao dispor do setor público. Uma vem sendo utilizada, a concessão, e a outra ainda é amplamente ignorada, a despeito de ser aceita, da boca para fora, por muitos: as parcerias público-privadas (PPPs).
Apesar de a lei federal sobre o tema (11.079) ter sido promulgada no distante ano de 2004, ainda temos no país apenas 159 PPPs assinadas. O município é o ente que dinamizou o uso das PPPs nos últimos anos, sendo que a esmagadora maioria das PPPs em cidades são para iluminação pública, resíduos sólidos, água e esgoto. Os estados, infelizmente, diminuíram o entusiasmo que um dia tiveram com as PPPs, concentrado na era pré-Lava-Jato, contando, atualmente, com raquíticas 20 iniciativas ativas em suas carteiras. Os motivos associados à timidez dos estados com as PPPs ainda me escapam. Caberá às prefeitas e aos prefeitos a tarefa de construir legados em suas cidades por intermédio das PPPs, revolucionando o modo como o gasto público é feito na tentativa de implantar políticas e sendo criteriosos na escolha sobre quais projetos de PPP devem ser priorizados, em função de circunstâncias locais e nacionais.
É dever de todos apoiar os municípios no âmbito das PPPs e concessões, como a Frente Nacional de Prefeitos (FNP) vem realizando, para que experimentem tais modalidades de contratação pública no primeiro semestre do mandato, tendo em vista o objetivo de qualificar o gasto público. Valorizar cada R$ 1 previsto no orçamento, além de um dever, gera também um impacto virtuoso na burocracia desgastada pelo apego ao meramente formal. As PPPs não nutrem apenas o desejo pelo “fazer” de prefeitos e prefeitas no começo de mandato, mas resgatam o propósito de gestores públicos concursados desincentivados para inovar e para a tomada de risco calculada.
Que o dilema da “vacina sem seringa” seja radicalmente diminuído no cotidiano dos cidadãos em busca de serviços públicos e que a qualidade do gasto público possa ser efetivamente realizada com os instrumentos que já estão ao dispor do setor público e da iniciativa privada. O cidadão só tem uma expectativa: que os serviços públicos denotem racionalidade e bom senso, no lugar da aleatoriedade ou da má fé. Onde os instrumentos tradicionais para a realização do gasto público não estiverem funcionando plenamente, será imoral ignorar com seriedade o potencial das PPPs.