VISÃO DO CORREIO

Resistência democrática

''Que todo o ocorrido sirva de alerta para outros países, cujos governantes investem, sistematicamente, contra as instituições republicanas, colocando em risco a estabilidade democrática''

Tempos sombrios os atuais. Se não bastasse a pandemia do novo coronavírus, que ceifou a vida de mais de 1,85 milhão de pessoas em todo o planeta, o maior baluarte da democracia mundial, os Estados Unidos, sofreu ameaça nunca antes vista na era moderna. Mas as instituições republicanas mostraram sua força ao repudiar e impedir que prosperasse a tentativa de golpe na nação democrática mais longeva do Ocidente. As cenas da invasão do Capitólio, o Congresso norte-americano, chocaram o mundo e provocaram reações imediatas.

As instituições democráticas não deixaram progredir a insurreição patrocinada por apoiadores de extrema direita — grupos que mais se assemelham a hordas fascistas — do ainda presidente Donald Trump, que teima em não aceitar o resultado das eleições, de novembro, que elegeram o democrata Joe Biden para a Presidência dos EUA. Ele insuflou, de forma irresponsável e inaceitável, seus seguidores a invadir a sede do Legislativo, ocupado pela última vez há mais de dois séculos por tropas inglesas, durante a Guerra Anglo-Americana de 1812.

No entanto, prevaleceu a força da democracia americana, que ficou patente no repúdio unânime, ao desatino do republicano Donald Trump — em menos de duas semanas, deixará a Casa Branca —, na tentativa de tentar impedir a proclamação da vitória de Biden. O ataque sem precedentes na história à democracia americana teve saldo de quatro mortos e foi rechaçado, imediatamente, inclusive pelos mais proeminentes membros do Partido Republicano, que não concordaram com o descalabro incentivado pelo ainda presidente dos EUA.

Mesmo quando se viu forçado a pedir a seus correligionários que deixassem as dependências do Capitólio e voltassem para casa, o antigo apresentador do reality show O Aprendiz insistiu em contestar a escolha dos eleitores americanos para que Biden comande o país nos próximos quatro anos. Mas é incontestável a vitória do veterano democrata nas urnas, de acordo com a legislação que rege as eleições nos Estados Unidos.

Todos os votos dos 50 estados foram validados pela Justiça, nas 60 tentativas de impugnação apadrinhadas por Trump. Diante disso, jogou sua última cartada com senadores fieis e o vice-presidente Mike Pence, que presidia, no Capitólio, a sessão de ratificação da eleição de Biden. O ainda presidente apostava que seu vice declarasse nulos os votos em estados onde fora derrotado. Acreditava que os votos seriam cancelados por Pence depois de serem contestados pelos senadores republicanos, o que não ocorreu.

Ademais, Trump sofreu outra derrota no mesmo dia, com a vitória do primeiro negro para o Senado dos Estados Unidos, o pastor Raphael Warnock, da mesma igreja do reverendo Martin Luther King, ícone na luta pelos direitos civis e contra o racismo, assassinado a tiros em 1968 a mando de supremacistas brancos. Com a eleição de outro democrata na Georgia, o jornalista Jon Ossoff, o partido de Biden terá maioria nas duas casas legislativas, o que facilitará seu governo de renovação.

A gravidade da atitude do despreparado Trump não deve ser relevada de maneira alguma, pois ele promoveu uma inacreditável ruptura do Estado democrático de direito. Comparou-se aos ditadores das chamadas “repúblicas de bananas”, promotores de golpes institucionais muito comuns na segunda metade do século passado na América Latina.

Anteontem, a mais antiga democracia da era moderna viveu momentos difíceis de serem esquecidos. Por piores que tenham sido, o mais importante, porém, é que a democracia resistiu. Que todo o ocorrido sirva de alerta para outros países, cujos governantes investem, sistematicamente, contra as instituições republicanas, colocando em risco a estabilidade democrática.