ARTIGO

Brasileiros-árabes: papel, presença e perspectivas futuras

''O caminho mais fácil para fortalecer a difusão da cultura árabe se dá pelo engajamento do setor privado, tanto dos países árabes quanto do Brasil, em projetos e iniciativas de cunho cultural''

Qais Shqair
postado em 25/01/2021 06:00 / atualizado em 25/01/2021 08:55

* Embaixador chefe da Missão Permanente da Liga dos Estados Árabes no Brasil

 

O Brasil é um continente em si mesmo: ocupa quase 44% da América Latina, com mais de 8,5 milhões de km². Sua população ultrapassa 210 milhões de pessoas, das quais 12 milhões são de origem árabe, ou seja, 6% da população. É o quinto maior país do mundo, tem a nona maior economia e é o único de língua portuguesa nas Américas. Variadas narrativas buscam explicar a ligação do nosso mundo árabe com o Brasil.

Algumas delas remontam ao período da colonização portuguesa. Evidências de inscrições e referências islâmicas, por exemplo, foram encontradas em cidades importantes, como o Rio de Janeiro, assim como registros de que guias muçulmanos, com experiência em ciências do mar, teriam acompanhado expedições ao Brasil. Não por outro motivo, o pesquisador Ali El Kettani defende que os árabes estavam no Brasil antes da chegada dos portugueses.

Quanto à atual presença árabe, registros indicam que, mesmo antes de 1850, quando as correntes migratórias ganharam impulso para o país, havia forte evidência de manifestação da cultura árabe em muitas cidades. Essa presença foi robustecida após o fim da Primeira Guerra Mundial, com a chegada de imigrantes majoritariamente da região do Levante, que compreende hoje a Síria, o Líbano, a Jordânia e a Palestina. Vemos hoje, ainda, o impacto dessa presença árabe em nomes de famílias de destaque, em segmentos importantes da sociedade brasileira, como na política, nas artes, na academia, no mundo empresarial e nas ciências, entre outros.

Um bom exemplo dessa herança pode ser observado pela rica e vasta contribuição da língua árabe à língua portuguesa. Nove por cento do vocabulário têm origem do árabe, como demonstram centenas de vocábulos de uso corrente pela população: “azeite”, “arroz”, “açúcar”, “almofada”, “enxaqueca”, “fulano”, entre tantos outros.

Da mesma forma, há palavras que usamos em árabe de origem portuguesa. Na Jordânia, por exemplo, usamos a palavra “garout” para nos referirmos a “menino”, como no português usa-se “garoto” para o menino e “garota” para a menina. Outra contribuição de relevo deu-se na gastronomia, com a incorporação de pratos da sofisticada culinária árabe: grão de bico, tabule, quibe, babaganuch, esfiha, arroz majadra, entre aqueles mais apreciados pelos comensais brasileiros.

Pesquisa realizada pela Câmara de Comércio Árabe-Brasileira, no segundo semestre do ano passado, revela a força da presença árabe na sociedade brasileira:

» Dos 11,6 milhões que formam a comunidade de árabes-brasileiros, 29% são de origem libanesa, 13% sírios, 6% marroquinos, 5% palestinos e 5% egípcios.

» A comunidade árabe-brasileira tem alto nível de escolaridade, com forte presença nos setores empresarial, jurídico e de engenharia, medicina entre outros.

» No que tange à prática religiosa, católicos constituem 50% dos árabes-brasileiros; muçulmanos somam 20% e evangélicos 17%.

» “Buscar uma vida melhor”: este foi o principal motivo que levou os imigrantes árabes a escolherem o Brasil para morar. Mais: 35% dos árabes-brasileiros ainda defendem, hoje, que o Brasil é um país seguro e tolerante.

» 72% da comunidade árabe-brasileira demonstra interesse em aspectos da tradição árabe. Embora a difusão cultural se enfraqueça à medida que as gerações se sucedem, a culinária segue sendo uma das mais importantes heranças culturais transmitidas de geração para geração. Assim, 94% de membros da comunidade árabe-brasileira reconhecem suas origens árabes; 48% se definem como árabes e em 24% das famílias árabes, um membro fala árabe.

» Das cinco gerações da comunidade árabe-brasileira apenas a última demonstra pouco interesse relativo por sua identidade cultural ou por um sentimento de pertencimento.

» No que concerne ao bem-estar e à prosperidade econômica, a situação da comunidade árabe é superior à média nacional, com 10% dos empresários de destaque de origem árabe. Em geral, a visão da comunidade árabe-brasileira sobre a contribuição que deram ao Brasil é positiva. 76% dos entrevistados, por exemplo, acreditam que ajudaram a construir a economia brasileira, com geração de empregos e oportunidades.

» 82% dos muçulmanos na comunidade falam árabe, sobretudo devido ao vínculo estreito da língua com a religião. Entre os católicos, o percentual é de 10%, e entre os evangélicos, 6%.

» Cerca de 56% da comunidade árabe falam apenas o português; 44% falam outras línguas, 26% inglês e 24% falam árabe. O domínio do árabe aumenta na primeira e na segunda gerações e entre aqueles com faixa etária entre 24 e 34 anos.

O ensino da língua árabe e a divulgação da cultura árabe são, sem dúvida, dois eixos importantes no esforço de promoção da herança árabe no tecido social brasileiro e no fortalecimento das relações entre árabes e brasileiros. Da mesma forma, os meios de comunicação têm também papel significativo a desempenhar na promoção da cultura e da civilização árabe.

Contam, para tanto, com recursos de amplo alcance que poderiam gerar iniciativas e projetos culturais e de entretenimento: canais de satélite em árabe, programas, documentários, filmes e séries árabes traduzidos ou dublados. No plano audiovisual, identifica-se também espaço significativo para investimentos no que tange à difusão cultural, com eventuais projetos cinematográficos, televisivos e conteúdo de mídia. Para o espectador brasileiro e árabe-brasileiro, iniciativas culturais poderão aproximar as duas comunidades, com suas ricas narrativas, tradições e intercâmbio de conhecimento.

O caminho mais fácil para fortalecer a difusão da cultura árabe se dá pelo engajamento do setor privado, tanto dos países árabes quanto do Brasil, em projetos e iniciativas de cunho cultural. Ganham os países, que fortalecem seus laços diplomáticos; ganha o setor privado, que exerce sua responsabilidade social; ganha a população, que terá diante de si um extraordinário universo cultural a descobrir e um mundo novo a explorar. Para tanto, a parceria público-privada terá papel crucial no êxito de qualquer empreendimento cultural.

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