ARTIGO

É dando que se recebe

''Até quando a nata da vida política, a desiludida juventude, mulheres e homens de bem consentirão que assim permaneça? É a pergunta que ouço nas ruas por onde passo''

ALMIR PAZZIANOTTO PINTO
Advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho. Autor de A Falsa República


O conhecimento que tenho de política se limita ao Brasil, mais especificamente ao Estado de São Paulo. Jamais tento demonstrar experiência em relação a outros povos, mesmo vizinhos. Surpreende-me a facilidade com que ouço pessoas discorrerem sobre economia, processos eleitorais e práticas políticas na China, Japão, França, Inglaterra, Itália, Estados Unidos, países com histórias, tradições, culturas, constituições e legislações tão diferentes das nossas.

Os vizinhos na América do Sul estão geograficamente próximos, mas, do ponto de vista cultural, muito distantes. Qual a semelhança com a Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Colômbia, Venezuela, descobertas e colonizadas pelos espanhóis na mesma época em que éramos colonizados pelos portugueses? Com a independência, o Brasil passou ao regime monárquico, sob o mando de D. Pedro I, ao passo que a América Latina se fragmentava em repúblicas presidencialistas.

A independência do Brasil cobrou reduzido preço em vidas, para o que contribuiu o fato de D. Pedro I pertencer à família real portuguesa. Já a independência do Chile, Bolívia, Colômbia, Venezuela, Uruguai, Argentina, exigiu elevado tributo de sangue, com milhares de mortos, feridos, famílias e propriedades destroçadas. A biografia de Simon Bolívar é fundamental para se conhecer a história da América Espanhola.

Estamos na oitava Constituição e na sétima República. É inegável que desde 1988 o Brasil passou a conhecer fenômeno ignorado nas práticas políticas passadas. Refiro-me ao “é dando é que se recebe”, também conhecido como “toma lá dá cá”. O criador teria sido o deputado federal e ministro Roberto Cardoso Alves. Orador eloquente, dotado de poderosa voz e de grande estatura, Robertão era adepto incondicional do pragmatismo político. Raciocinava e agia com os olhos postos no governo e no Diário Oficial. Pertenceu ao Partido Democrata Cristão (PDC) antes de 1964. Foi discípulo de Franco Montoro. Extintos os partidos pelo Ato Institucional nº 2, de 27/10/1965, filiou-se à Aliança Renovadora Nacional (Arena) e se elegeu deputado federal por São Paulo em novembro de 1966. Por negar apoio à cassação do mandato do deputado Márcio Moreira Alves, acusado de ofender os brios das Forças Armadas, teve o mandato cassado pelo AI-5 e ingressou no Movimento Democrático Brasileiro (MDB).

Com o fim do bipartidarismo, Roberto Cardoso Alves aderiu ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e voltou à Câmara dos Deputados. Grande proprietário rural, ele combateu propostas de ampliação dos direitos sociais na Assembleia Nacional Constituinte. Aliando-se ao deputado Ricardo Fiuza, do Partido da Frente Liberal (PFL), foi um dos ideólogos do Centrão, onde se congregavam as forças conservadoras da Câmara dos Deputados, sob a bandeira do “é dando-se que se recebe”.

A pulverização partidária, a ausência de compromissos ideológicos e a leviandade na administração dos interesses públicos, converteram a Câmara dos Deputados e o Senado numa espécie de supermercado, onde se negocia apoio ou oposição ao Poder Executivo. Palavra, assinatura, honra e dignidade, podem ser comprados. Quando o presidente da República, de olhos na reeleição, falta de liderança política e desprovido de partido próprio, pratica o toma lá dá cá, torna-se refém da Câmara dos Deputados e do Senado. É quando a negociação política de alto nível corre pelo ralo. Deixa de zelar pelos interesses da nação para se transformar em comércio de emendas parlamentares, de medidas provisórias, de ministérios, de diretorias de estatais e de sociedades de economia mista. Nessas circunstâncias, os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado adquirem poderes excepcionais porque, segundo o Regimento Interno, são senhores da pauta, da ordem do dia e da condução dos trabalhos.

Cheguei à conclusão que o “é dando é que se recebe”, cuja origem foi atribuída maldosamente a São Francisco de Assis, é criação brasileira nascida com o “Centrão” ao longo dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte. Não o copiamos de outro país e não o herdamos de Portugal. É coisa nossa, como diz a música de Jorge Ben Jor. Ressalvadas exceções, a política no Brasil parece ter caído em poder de baixo clero, composto por praticantes do “é dando que se recebe” e do “toma lá dá cá”. Até quando a nata da vida política, a desiludida juventude, mulheres e homens de bem consentirão que assim permaneça? É a pergunta que ouço nas ruas por onde passo.