FÁTIMA APARECIDA DE SOUZA BORGHI, Procuradora Regional da República e LEOMAR DARONCHO, Procurador do Trabalho
O maior desastre da indústria química ocorreu no dia 3 de dezembro de 1984, em Bhopal, na Índia. Foram cerca de 10 mil mortes instantâneas, além dos 200 mil afetados pela névoa do agrotóxico Sevin, com doenças crônicas e alterações genéticas na 2ª geração de vítimas. A tragédia foi marcada pela condescendência oficial e pela negativa da empresa Union Carbide Corporation em fornecer detalhes técnicos do produto, dificultando a investigação e o tratamento das vítimas.
O Brasil consolidou-se como importante mercado para agrotóxicos, mesmo ignorando dados de produtos clandestinos. As contaminações são acobertadas pela subnotificação, como atestam estudos que ligam a exposição ao veneno às doenças crônicas. Há notícias pontuais envolvendo agrotóxicos, como em Paulínia/SP (Shell-Basf) e na estarrecedora denúncia de más-formações congênitas e puberdade precoce na Chapada do Apodi/CE (Universidade Federal do Ceará).
A tolerância a produtos extremamente tóxicos, ignorando restrições nos países de origem, multiplicou as autorizações para novos praguicidas. Em 2019, foram liberados 475, recorde histórico; e mais 80 na pandemia. A opacidade dos dados e a astúcia de iniciativas permissivas driblam normas constitucionais de proteção e afetam o meio ambiente, sem enfrentar democraticamente a discussão do “PL do Veneno”. O interesse da indústria química se impõe, sorrateiramente, em órgãos e instâncias criados, em princípio, como guardiões da saúde humana e da natureza.
No final de 2017, em 21 dias, a Anvisa liberou, com deficit na transparência e na participação da sociedade, o Benzoato de Emamectina, que havia sido vetado pela Agência devido ao alto grau de perigo à saúde, em qualquer dose. No caso do Paraquate, ligado à Doença de Parkinson, mutações genéticas e indicação de letalidade, com um único gole, a Anvisa fixou cronograma de redução com banimento total em 22/9/2020. Às vésperas da data fatal, porém, cedendo à pressão do setor econômico, autorizou a desova na safra de 2021 do estoque adquirido espertamente no período nos quatro anos de restrição.
A agência (de saúde) sensibilizou-se com o dano econômico de alguns — que assumiram o risco de comprar produtos com data de banimento — desprezando o dano às comunidades expostas, em decisão que também ignora os gastos do SUS com as enfermidades. Há risco semelhante nas demandas judiciais do setor de aviação agrícola contra leis municipais que, para proteger as comunidades locais, proíbem a pulverização aérea.
Impedir o legislador municipal, que conhece as peculiaridades locais, de proteger à sua população significa obstar o exercício da participação democrática das comunidades afetadas e também de prevalência da norma que melhor defenda o direito fundamental tutelado. São notórios os casos de intoxicações agudas e crônicas em comunidades pulverizadas, como na escola do Assentamento Pontal do Buriti, em Rio Verde/GO, em 2013, e na aldeia indígena Guyra Kambi’y, em Dourados/MS, em 2015.
Numa sociedade democrática bem informada, a legislação municipal defendendo a vida deveria ser saudada como sinal de que a vereança está atenta às mazelas sanitárias e ambientais associadas ao intenso uso de agrotóxicos no território em que vive o ser humano. Trata-se de atuação legítima do legislador em prol do bem-estar da comunidade local.
Em 2018, o Ministério da Saúde registrou a preocupação com a frequente infração de normas básicas na pulverização aérea, relatando estudos que evidenciam o impacto na saúde humana e no meio ambiente. O parecer do ministério foi favorável ao Projeto do Lei nº 541/2015, que propõe a proibição da prática.
Não deveria ser naturalizada e sancionada a convivência com os alarmantes dados, quantitativos e qualitativos, da exposição ao veneno. O modelo de produção químico-dependente é incompatível com as balizas constitucionais, clamando pela inversão da excessiva tolerância das instâncias políticas, técnicas e jurídicas incumbidas de preservar a vida e o meio ambiente.
O Dia Mundial de Combate ao Uso de Agrotóxico (3 de dezembro) lembra que há um árduo caminho pela frente, que passa pelo esclarecimento, da sociedade e das autoridades, de que a defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado preserva, para as presentes e futuras gerações, a possibilidade de uma sadia qualidade de vida, em cada lar e comunidade, como idealizou o constituinte.
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