Às crianças estrangeiras separadas dos pais e trancafiadas em centros de detenção mais parecidos com jaulas. Às mães, arrancadas de seus filhos por sonharem com o “american dream”. Às famílias de George Floyd e de tantos outros negros, que, quando não são mortos pela polícia, não conseguem respirar ante um racismo sistêmico enraizado há décadas na sociedade. Aos muçulmanos, que, por acreditarem em Alá (o mesmo Jeová, Deus, Tupã), são tratados como terroristas e impedidos de entrar nos Estados Unidos. Aos mexicanos, reduzidos por ele a criminosos e “bad hombres”. À liberdade de imprensa mutilada, desfigurada por fake news, achincalhada por ataques a jornalistas. À democracia, ridicularizada em todo o planeta, enquanto o autocrata, no alto de seu egocentrismo, é incapaz de fazer uma autocrítica e admitir a derrota como reflexo de seu desastre. Os extremistas não mais passarão.
O “golpe” desferido contra Donald Trump pelas urnas foi um alento em um ano marcado pela tragédia da covid-19, pela disseminação do ódio, da retórica virulenta, da xenofobia, do racismo estrutural, das fake news. O discurso de vitória de Joe Biden mostrou como o atual e o futuro titular da Casa Branca têm projetos políticos opostos e díspares. Biden falou em paz, em amor, em unidade. Pregou que os Estados Unidos não governem como um exemplo de poder, mas pelo poder de seu exemplo. O triunfo do democrata fez com que o ar pesado e poluído que pairava sobre a nação mais influente do planeta desse lugar à brisa da normalidade. Um retorno ao eixo da sanidade política.
Até que os EUA rumem por esse trilho da moderação, o comportamento bizarro de Trump deve complicar a transição. No pior exemplo de mau perdedor, o republicano se recusa a aceitar a derrota, não permite o repasse de documentos sigilosos aos democratas e vomita verborragia frouxa na internet, o que pode incitar reações violentas por parte de seus simpatizantes. O fracasso eleitoral de Trump talvez seja o prenúncio de uma onda mais progressista e liberal mundo afora.
A democracia pode, e deve, calar todos aqueles que se escondem atrás do ódio para governar. Deve anular aqueles que abusam do populismo para se perpetuar no poder, às custas de hipocrisia, mentira e confusão. Aqueles “líderes” que fazem chacota com as minorias étnicas e com a diversidade sexual. Que se aferram a uma agenda religiosa, menosprezando o laicismo que rege o Estado. Que, mesmo em meio a uma pandemia, negam a ciência e preferem alimentar o próprio ego a cuidar do bem-estar social. Que o mundo aprenda um pouco com a vitória de Biden. E o respeito, a transigência, a moderação e a paz se sobreponham à ignorância.