ARTIGO

Estupro culposo?

''Não podemos deixar cessar a indignação, porque está em cada um de nós a responsabilidade por não permitir que esses 'casos' se repitam''

ANIE RAMPON BARRETO
Delegada da Polícia Civil do Distrito Federal, diretora do Sindicato dos Delegados, pós-graduada em gestão de Polícia Civil pela Escola Superior de Polícia Civil e em direitos humanos e direito internacional humanitário pela Universidad Externado de Colômbia


Muito se fala, atualmente, sobre violência policial e revitimização e o que eu costumo repetir é que a violência não é exclusividade da polícia, ela infelizmente está em todo nosso sistema de justiça criminal que, não raras vezes, maltrata, humilha e menospreza vítimas e autores de crime, como o vídeo da malfadada audiência do “Caso Mariana Ferrer” nos mostrou. Mais do que isso, a violência do sistema de justiça criminal só reflete a violência da própria sociedade. Nesse caso específico, a violência contra a mulher impregnada na sociedade.

Assim, refletindo sobre o assunto, só reforço minha convicção de que “as mulheres têm duas escolhas: ou elas são feministas ou são masoquistas”, como bem afirmou a célebre ativista Gloria Steinem. Escolher o caminho de negação de que o movimento feminista ainda tem inúmeras batalhas a serem enfrentadas é aceitar o sofrimento, a humilhação, a violência, o desrespeito, a indiferença e a discriminação.

O que está na origem da violência institucional praticada contra Mariana Ferrer numa audiência judicial é o mesmo que está no caso da “menina de 10 anos” que engravidou após ter sido estuprada e foi hostilizada quando seria submetida a um aborto. Ou será que este fato já caiu no esquecimento? Quantas “Marianas Ferrer” e quantas “meninas de 10 anos” mais serão necessárias para que mulheres e homens percebam que é chegada a hora de erguermos, juntos, a bandeira do feminismo? A luta é por direitos e oportunidades iguais e pelo reconhecimento e respeito da dignidade em todo e qualquer ser humano.

Em meio a tantos comentários sobre o tema, ouvi que era preciso ter cautela ao criticar a decisão judicial que absolveu André de Camargo Aranha, o acusado pelo crime de estupro, porque não se tratou de um “complô” para absolver o autor e culpabilizar a vítima. Pois, para mim, é justamente o contrário! Há, sim, um complô, e ele é muito mais perverso, porque envolve todos que negam a existência do machismo estrutural, que ignoram que as diferenças entre os indivíduos são usadas para justificar tantos tipos de violência contra a mulher, que se recusam a ter empatia com a dor de quem sofre assédio, importunação, estupro, de quem recebe salários menores, de quem tem a fala interrompida, de quem é preterida em posições de trabalho, de quem é sobrecarregada de atribuições distribuídas desigualmente nos lares, de quem é julgada pelas roupas que veste ou pelas palavras que usa. É esse complô da sociedade patriarcal, que promove a autoproteção dos homens e o julgamento e discriminação das mulheres, que está na raiz de todo tipo de violência.

E dói mais quando a violência é praticada justamente pelos agentes públicos que deveriam combatê-la. E dói em todas. É por isso que, após a repercussão do “caso” na mídia, também ouvi mulheres, mães, gritando e chorando de indignação e medo pela sociedade em que crescerão suas filhas e filhos. Essa sociedade que permitiu um “remake” de um tribunal da inquisição, de uma audiência judicial de tempos em que investigações e processos de estupro consideravam a reputação da vítima e seu comportamento sexual anterior.

Esse debate, portanto, é muito maior que a inexistência do estupro culposo. É sobre a necessidade de mulheres ocupando espaços e se posicionando politicamente, para que os direitos reconhecidos em leis e na Constituição sejam, de fato, garantidos e respeitados. É sobre não aceitar que homens se fechem em suas togas, becas, ternos, uniformes e fardas para a dor alheia, para a nossa dor. Que continuem sendo pagos pelo Estado para perpetuarem um machismo estrutural e massagearem seus egos com teses jurídicas, despreocupados com as consequências reais de suas decisões e atitudes.

Não podemos deixar cessar a indignação, porque está em cada um de nós a responsabilidade por não permitir que esses “casos” se repitam. A violência contra a mulher, seja ela física, sexual, moral ou psicológica, é a parte visível do problema, e nos convida a encarar o real desafio, que é garantir em plenitude os direitos da mulher e, somente assim, evoluir como sociedade.

Termino citando novamente Gloria Steinem: “O indicador mais confiável de que um país é ou não violento — ou de que usará força militar contra outros países — não é a pobreza, nem os recursos naturais, a religião ou o grau de democracia: é a violência contra a mulher. Ela normaliza todas as outras violências”.