Em tempos de muitos termos, muitas vezes aplicados a tudo, apagando o seu sentido inicial, como é o caso de necropolítica, muita gente reproduz o combinado das personagens do conto A gente combinamos de não morrer, da escritora brasileira Conceição Evaristo, um dos que compõem a obra Olhos D’Água. O problema é que o combinado é quebrado, mesmo por nós, quando dizemos nós combinamos de não morrer.
Ora, a coisa mais linda desse combinado enunciado por Bica, personagem que narra o conto, é a capacidade de divagar e transitar pelos mais diversos usos linguísticos da língua sem arredar do seu combinado inicial, a gente combinamos de não morrer, que, aliás, representa, ali, é um combinado de todos os pretos e pretas que estão na linha da morte.
Pensar em línguas e linguagens nos faz justamente entender o que é quebrar um combinado. A cada 23 minutos, um jovem negro tomba no Brasil. O seu sangue é representado nos combinados que só a língua é capaz de registrar, tal como cada jovem fala. O combinado nem sempre é cumprido, mas sempre seu cumprimento não se dá pelas forças de morte do racismo, que fazem com que o Brasil seja, ao mesmo tempo, um dos países de maior concentração negra no mundo e aquele que mais ceifa a possibilidade de existência de negros/as no futuro, ao ceifar — de forma mais aguda — os homens pretos.
Quando ouço por aí o “nós” substituindo o “a gente” só me lembro de minha irmã Ana Aloisia. Dona de uma sofisticação linguística única, Ana Aloisia é uma mulher preta que conjuga perfeitamente o a gente com a desinência do verbo ir na primeira pessoa do plural. Ana, como qualquer falante preto deste país, sabe bem por sua própria consciência que não é apenas nós que é pronome que combina com aquela forma, mas, até mais sofisticadamente, a gente.
Chama-me muito a atenção de que esse combinado entre gente preta, curiosamente escrito por uma das mais importantes autoras literárias, uma das grandes intelectuais negras da nossa história, passe pela revisão quando pronunciado nos ambientes intelectuais, inclusive por gente negra.
Por outro lado, quando as pessoas normalmente repetem aquele famoso verso do Ultraje a Rigor, banda de brancos roqueiros, que é a gente somos inútil, elas respeitam a chamada licença poética.
Essa situação expõe nada mais nada menos aquilo a que venho chamando de racismo linguístico. Trata-se de uma dada formação psicossocial que tem como prescrição o racismo como sua formação histórica. É a língua o agente balizador de uma existência em forma de humanidade que nega ao corpo negro a possibilidade de ser representado por uma das formas de representação dos chamados homens, aqueles que significam “verdadeiramente” o humano.
Em todos os casos, esse monitoramento linguístico mostra como a branquitude é poderosa na língua. É como se houvesse um branco monitorando cada ato linguístico em cada um de nós. Mesmo que o a gente não tenha uma origem essencialmente africana (e não estou aqui afirmando sobre isso), precisamos levar em conta aqueles que produzem os atos de discurso e de fala.
Bica e Ana Aloisia são mulheres pretas que, embora o falar sofisticado, que pareça condescendente com a ideologia da gramática normativa, não abrem mão de suas felizes escolhas sintáticas. Mas, e se não fossem escolhas justificáveis num dado enredo de habilidade e sofisticação? Ainda assim, estamos falando de comunidades negras heterogêneas, que vão desde o “a gente vamos” até o “nós vai” do meu velho distrito do campo onde eu nasci.
Ou seja, as origens africanas foram também suplementadas por populações em diáspora que vêm escolhendo quais usos de português (ou melhor, pretuguês — termo cunhado pela gigante Lélia Gonzalez) preferem, e o a gente combinamos de não morrer é aquele combinado de respeito que tem que ser pronunciado corretamente.
De línguas e seus usos também se constrói autonomia, identidade, combate-se preconceito e reafirma-se que diferenças são potências que precisamos observar e contemplar na seara da luta por justiça. Nomear é poder.
*Linguista aplicado. Professor da Universidade Federal do Sul da Bahia e doutor em letras pela USP, é autor de Racismo linguístico, os subterrâneos da linguagem e do racismo
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