ELEIÇÃO EUA

Exemplo americano

''Se Trump agiu como macaco em casa de louça na mais tradicional democracia do mundo, imagine-se o que Bolsonaro fará na apuração das eleições presidenciais brasileiras em 2022''

» ANDRÉ GUSTAVO STUMPF Jornalista
postado em 10/11/2020 06:00 / atualizado em 10/11/2020 08:31

A eleição presidencial dos Estados Unidos de 1876 foi a vigésima-terceira no país. Samuel J. Tilden venceu Rutherford B. Hayes na votação popular, mas obteve 184 votos no Colégio Eleitoral enquanto Rutherford chegou a 185. Vinte votos do Colégio Eleitoral não foram contados. Esses vinte votos estavam na disputa em três estados: Flórida, Louisiana e Carolina do Sul, cada partido informou que seu candidato tinha vencido. Os vinte votos eleitorais foram no final atribuídos a Rutherford após uma briga judicial e política, que lhe concedeu a vitória com 185 votos.

A guerra civil havia terminado recentemente. Abraham Lincoln, reeleito, foi assassinado no Teatro Ford, em Washington. Na eleição seguinte o escolhido foi Ulysses S. Grant, que fez um governo difícil, cujo mérito foi perseguir os índios e matar os bizões (uma espécie de búfalo), que constituíam a principal fonte de proteínas dos índios. Os nativos foram exterminados por consequência da política de privá-los de seu alimento. Naquele momento, as tropas do norte, que tinham vencido a guerra, ocupavam alguns estados do sul. A escravidão tinha sido extinta e os direitos do negro restabelecidos.

Na eleição de 1876 surgiu o advogado Samuel J. Tilden com melhor discurso e proposta objetivas para reerguer o país. O problema era a sua origem. Ele pertencia ao lado derrotado na Guerra da Secessão. A contagem dos votos foi interrompida. Representantes dos dois partidos, republicanos (que dominavam o norte) e democratas (que administravam o sul) reuniram-se num hotel em Washington e negociaram durante vários dias. Foi feito o acordo. O republicano foi declarado vencedor da eleição, tomou posse e governou sem problemas. Em troca, seu governo retirou as tropas do sul, as autoridades anteriores à guerra reassumiram seus cargos e os negros perderam seus direitos. Na prática, foi criado o apartheid nos Estados Unidos.

Só a partir das grandes manifestações ocorridas nas principais cidades norte-americanas nos anos sessenta do século passado, a segregação racial nos Estados Unidos passou a ser contestada a partir da forte ação de personagens como Martin Luther King. Há uma espécie de jeitinho norte-americano. Quando as coisas se complicam, dentro do país, eles sabem negociar como se fossem mineiros.

Abraham Lincoln, que era um contador de piadas, sabia negociar. Para aprovar o fim da escravidão, ele comprou, com benesses e empregos, votos na oposição. Parece o momento atual. A vitória de Joe Biden foi anunciada pelas grandes redes de televisão, que fizeram projeções a partir do que havia sido apurado depois de contados mais de 140 milhões de votos. No ano 2000, após guerra judicial, George W. Bush venceu Al Gore na Flórida por uma diferença de 570 votos. A decisão da Suprema Corte foi estranha. Concedeu prazo curtíssimo para acabar com a confusão. A recontagem foi interrompida. Os juízes não entraram no mérito.

A ainda maior economia do mundo trabalha com sistema de apuração de votos arcaico e anacrônico. A estrutura do processo eleitoral remonta ao início do país. O Colégio Eleitoral é consequência do poder dos grandes proprietários de terras, todos escravagistas. O objetivo era manter o poder nas mãos deles, garantir a democracia livre, o capitalismo assegurado e impedir que outros sistemas de governo contaminassem o país. Foi o país imaginado pelo grupo branco, anglo-saxão e protestante, WASP na sigla em inglês. John Kennedy foi o primeiro presidente católico nos Estados Unidos.

Esse sistema criou o maior país do mundo, líder inconteste do Ocidente. Nos últimos tempos, vive um confronto com a China, segunda maior economia, que hoje tem classe média com mais de 400 milhões de pessoas. Maior do que a da Europa e a da América do Norte. Dentro dos Estados Unidos, as minorias falaram claramente. Negros, latinos e outras cidadanias votaram contra as políticas discricionárias de Donald Trump. Para nós, brasileiros, fica o exemplo. Donald Trump tumultuou as apurações. Seus advogados recorreram a todas chicanas possíveis e impossíveis para evitar a declaração de um vencedor. Quase deu certo.

Se Trump agiu como macaco em casa de louça na mais tradicional democracia do mundo, imagine-se o que Bolsonaro fará na apuração das eleições presidenciais brasileiras em 2022. Aqui, a apuração dura pouco mais de 12 horas. O presidente brasileiro já está preparando um decreto para fazer com que a eleição volte a ser realizada por cédula. É o início da confusão anunciada. O exemplo norte-americano vai se multiplicar no continente. 

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