RONALDO PINHEIRO DE QUEIROZ
Procurador regional da República, professor, mestre e doutor em direito pela PUC-SP
Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 10.887/2018, que visa alterar a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92), uma das normas mais importantes no combate à corrupção no Brasil.
Esse projeto nasceu a partir de grupo de trabalho criado pela presidência da Câmara dos Deputados, composto por juristas de renome, o qual trabalhou com três premissas básicas: incorporar na lei a jurisprudência consolidada nos Tribunais Superiores; compatibilizar com leis posteriores; e apresentar novos institutos. De fato, o PL no 10.887/2018 cumpriu esses objetivos e apresentou uma boa atualização na lei, como, por exemplo, o aumento do prazo para defesa dos réus em casos complexos, a expressa previsão de tutela de evidência para as cautelares patrimoniais e a regulamentação do acordo de não persecução cível.
O maior problema veio com a apresentação de redação substitutiva pelo relator do projeto, deputado Carlos Zarattini (PT-SP), que vem carregado de mudanças que, sem dúvida, trarão dificuldades e retrocessos no combate à corrupção, quando a própria Transparência Internacional reconhece um perigoso movimento nesse sentido no Brasil
Um dos maiores problemas vem nos artigos iniciais, quando se propõe a supressão de toda uma modalidade de atos de improbidade administrativa. O substitutivo pretende revogar as improbidades de violação a princípios da administração, as quais representam mais de 2/3 das ações ajuizadas pelo Ministério Público Federal. Condutas como nepotismo, fraude em concurso público, ausência de prestação de contas, favorecimento em licitações, tortura para obter confissão, entre várias outras restarão sem qualquer punição no âmbito da improbidade. Preocupa-nos não apenas os fatos que deixarão de ser punidos, mas também a real possibilidade de extinção das milhares de ações de improbidade em tramitação, pois a abolição de um fato típico retroage para beneficiar o réu como garantia básica do direito sancionador.
Outra mudança técnica proposta no substitutivo vai aumentar a dificuldade de recuperação do dinheiro desviado, contrariando precedentes do STJ, uma das premissas básicas do projeto. É pacífico na jurisprudência que as cautelares patrimoniais têm natureza de tutela de evidência, ou seja, não precisam demonstrar atos concretos de que o investigado esteja se desfazendo dos bens para torná-los indisponíveis ou sequestrá-los. Mesmo com essa técnica processual mais eficiente, estudos do CNJ apontam que a taxa de ressarcimento total é de 4% e a parcial é de 6,4%, ou seja, muito baixa. Agora querem que as cautelares se transformem em tutela de urgência, com a difícil tarefa de fazer provas concretas de dilapidação dos bens. O substitutivo, em vez de propor melhoria nesse campo, estatisticamente deficiente, piora a situação.
Propõe-se, também, a redução do prazo prescricional da improbidade e, com isso, o aumento da impunidade. E não adianta dizer que o prazo de 5 anos é o mesmo da redação original da lei, pois a alteração feita para o início da contagem faz toda a diferença.
O substitutivo diz que as sanções prescreverão em 5 anos, contados da data do fato. A redação atual do art. 23 diz que prescreve em 5 anos contados do término do mandato eletivo, ou seja, uma prescrição para prefeito poderia durar 9 ou até 13 anos, caso fosse reeleito. Para os servidores estáveis, a prescrição, em regra, também é de 5 anos, porém contado da data em que o fato se tornou conhecido pela autoridade competente, até porque a prescrição é uma punição pela inação e não se pode taxar o Estado de omisso quando não se toma conhecimento da infração. Aliás, o prazo da prescrição é medido pela relevância do bem jurídico protegido. No Código Penal, o crime de corrupção, que é semelhante à maioria das improbidades, o prazo prescricional é de 16 anos, isto é, acima de três vezes o prazo da improbidade.
Há outros pontos que também trazem preocupação, mas o presente espaço e os detalhes técnicos não permitem discuti-los nesse veículo, mas acredito que o leitor já percebeu que uma das principais leis de combate à corrupção no país pode sofrer alterações com a possibilidade de retirar boa parte de sua efetividade.É preciso reconhecer que a Câmara dos Deputados, como a casa do povo, fez, de forma louvável, inúmeras audiências públicas, ouvindo juristas e instituições sobre o projeto formatado pelo grupo de trabalho. As atenções, até então, estavam voltadas para um projeto bom. Com a apresentação do substitutivo, que altera radicalmente o projeto de lei, e mais ainda a Lei no 8.429/92, acreditamos que esse debate democrático deveria continuar no Parlamento, pois a sociedade precisa dizer em que direção quer ver o combate à corrupção no Brasil.