“AONU está tão doente que até seus melhores amigos já começam a temer que seu berço venha a servir-lhe também de leito mortuário”. Embora a frase soe como de nosso conturbado tempo, trata-se de artigo de James Burnham, na tradicional revista Seleções do Readers’s Digest, em 1948, pouco tempo após a Carta de São Francisco. Como se vê, não isenta de previsões nefastas desde sua fundação, a Organização das Nações Unidas (ONU) completa, agora, 75 anos, sobrevivente tanto da Guerra Fria quanto de suas contradições e fracassos.
Neste outubro, de outros tempos e perigos, a hipermodernidade de paz e de prosperidade que se prometia, junto com o fim da história, parece não haver chegado. Bem ao contrário. Com retrocessos e desavenças na governança global, a história segue fatalmente contínua, pêndulo inexorável entre civilização e barbárie.
Se o século 20 foi o da busca da regulamentação da guerra, com atuação incisiva do direito internacional para disciplinar e humanizar a mais brutal das ações humanas, o século 21 inicia-se com beligerância inaudita, a revelar novos atores e novas incertezas. O ideal irenista, com o pacifismo que levou ao Pacto Briand-Kellogs de 1928, apesar de sua relevância jurídica, ao proscrever e considerar a guerra como negação absoluta do direito, nada mais foi que esforço inútil, rumo aos 55 milhões de mortos da Segunda Guerra, com seu apocalíptico desenlace nuclear. Da proliferação de ogivas, do equilíbrio do terror e da paz pelo medo. “Les partenaires-adversaires”, com disse Raymond Aron, ou o direito como a mais sublime das quimeras, como disse antes Jean Giraudoux, na voz de sua personagem Bursiris, na peça A Guerra de Tróia não acontecerá.
Depois, os países “amantes da paz”, nos termos do preâmbulo da Carta da ONU, tomaram como assentes princípios básicos da convivência internacional: não ingerência, autodeterminação, segurança coletiva e solução pacífica de controvérsias. Não houve a terceira guerra mundial. A política de dissuasão nuclear, a par da queda do muro de Berlim e do fracasso contundente das utopias socialistas, revividas em meras farsas de manutenção de poder, foram prenúncios positivos à perspectiva da paz possível.
A atormentada e obstinada sobrevida da ONU, como constatam versados politólogos, assenta-se em algo de muito simples: a busca pela autoridade mundial fortalece-se após grandes rupturas, seguida às quase tragédias. É quando a instituição se reafirma enquanto fórum mundial insubstituível, provedora de multilateralismo cooperativo e de segurança coletiva. Logo, seus críticos contumazes parecem portadores de excessivas expectativas, diante do que de fato somos como sociedade internacional, com tantos vícios e desvios, nossos limites e circunstâncias.
Em artigo no Financial Times, em 2005, Philip Stephens parece sintetizar os dilemas da ONU, desde o título cabal: “As Nações Unidas, imperfeitas, mas necessárias”. E aduz: “A ONU é palco de discussões entre países e não a fonte das disputas”. A ambivalência permanente quanto às fronteiras entre o Estado-nação e as responsabilidades da comunidade internacional parece emanar do ar-condicionado do palácio da Quinta Avenida, em Nova York. O autointeresse estatal nem sempre é atitude esclarecida.
Decerto, a ONU é instituição imperfeita e sua estrutura insiste em refletir superadas relações de poder do segundo pós-guerra, conflito que acabou há 75 anos. O Conselho de Segurança é outro dilema imponderável e vastas regiões do mundo seguem apartadas do aparato de poder, de suas instâncias e de seus fundos de ajuda e cooperação, embora, paradoxo, a igualdade jurídica das nações seja conquista consolidada.
Por fim, como sempre referido nas efemérides onusianas, instituição única da humanidade, ela foi concebida não para nos conduzir ao paraíso, mas para nos salvar do inferno, como na engenhosa fórmula do embaixador americano Henry Cabot Lodge. Há o que comemorar. Reiteradamente fracassada em banir a guerra, as Nações Unidas permanecem indispensáveis na busca incessante de manutenção da paz.
*Advogado e professor