URUGUAI

Adiós, Mujica

"Eu não sou pobre, sou sóbrio, de bagagem leve. Vivo com apenas o suficiente para que as coisas não roubem minha liberdade", afirmou, certa vez.

Quando for visto dirigindo o lendário Fusca azul, lá para os rumos de sua chácara, em Rincón del Cerro, zona rural de Montevidéu, José “Pepe” Mujica provavelmente quase que passará despercebido. Aos 85 anos, o homem que ocupou o cargo máximo do Uruguai por cinco anos, e também o Senado, jamais abandonou a simplicidade, uma de suas marcas registradas. Mujica tornou-se ícone da esquerda sul-americana e da luta pelos menos favorecidos. Foi autêntico, no sentido de que sua conduta política esteve alinhada o tempo todo ao seu modo de vida. Mesmo no fim de sua carreira, preferiu uma saída sóbria e modesta ao espetáculo midiático. No poder, até que se prove o contrário, não permitiu-se lambuzar de conchavos escusos e de benesses oferecidas por empreiteiras e outros corruptores. Mostrou-se fiel aos seus preceitos, sem lançar mão de retórica radical ou raivosa.

Para entender a história de Mujica, recomendo o filme Uma noite de 12 anos. A obra conta a história da resistência à ditadura militar uruguaia no início da década de 1970, durante o regime de Juan María Bordaberry, que fechou o Congresso e iniciou uma perseguição implacável aos opositores. Mujica fazia parte dos Tupamaros, grupo guerrilheiro marxista-leninista que foi suprimido por Bordaberry. Pepe Mujica e nove colegas foram capturados e levados à prisão, onde passaram 12 anos de isolamento absoluto e enfrentaram torturas recorrentes. Depois de obter a liberdade, em vez de mergulhar na escuridão do ódio e da vingança, Mujica preferiu trabalhar pelo país e tornou-se chefe de Estado, 25 anos depois. Passou a ser chamado de “o presidente mais humilde do mundo”.

“Eu não sou pobre, sou sóbrio, de bagagem leve. Vivo com apenas o suficiente para que as coisas não roubem minha liberdade”, afirmou, certa vez.

O tempo no confinamento imposto pela ditadura serviu para que Mujica valorizasse, ainda mais, o pouco. “Tive de aguentar 14 anos em cana. Nas noites que me davam um colchão eu me sentia confortável. Aprendi que, se você não pode ser feliz com poucas coisas, você não vai ser feliz com muitas coisas. A solidão da prisão me fez valorizar muitas coisas”, admitiu. Mujica ficará conhecido também pela coragem em adotar políticas de Estado para temas considerados tabus. Em 2014, no penúltimo ano de seu governo, assinou decreto legalizando a maconha. Dois anos antes, tinha despenalizado o aborto para as primeiras 12 semanas de gestação. Fosse ainda presidente, seria considerado escória política pela extrema-direita. Mujica sai de cena sem muitas explicações. Afirmou apenas que sofre de uma doença e pretende aproveitar o pouco tempo que lhe resta. Gozar da liberdade que lhe foi arrancada durante 14 anos e do anonimato em Rincón del Cerro, ao lado da mulher, Lucia Topalanski.