“I can’t breath! I can’t breath!” “Eu não consigo respirar! Eu não consigo respirar!” Foram as últimas palavras de George Floyd, homem negro norte-americano que foi algemado, jogado ao chão e sufocado até a morte por um policial branco em maio, nos Estados Unidos. Em 2016, nos arredores de Paris, Adama Traoré, jovem negro de 24 anos, foi violentamente detido por policiais e morto duas horas depois em uma delegacia, sob custódia policial.
No Brasil, João Pedro, negro de apenas 14 anos, foi morto na casa de um parente durante operação policial no Rio de Janeiro, em maio. Ele estava brincando com outras crianças, quando os policiais invadiram a casa abrindo fogo. E aqui no DF, em junho, Wellington Luiz, trabalhador negro de 30 anos, ao sair de um mercado em Planaltina, foi abordado por policiais, revistado e violentamente agredido com golpes de cassetete.
Podemos relembrar vários outros fatos como esses que se repetem pela mesma razão, que muita gente se recusa a admitir, o racismo. A sociedade brasileira se formou sob os horrores de séculos de escravização de pessoas negras africanas. Com base na ideia artificial e desumana de que pessoas de pele escura eram inferiores, todos os tipos de castigos e torturas, físicos e morais, eram legalmente permitidos e nenhum direito lhes era assegurado.
Então, o que poderia resultar disso: uma sociedade igualitária sob o manto da democracia racial? Um povo que reconhece a existência de apenas uma “raça”: a brasileira? Ou um Brasil onde a maioria da população é negra desproporcionalmente confinada em favelas e em cárceres? Um país onde a maioria da população é inferiorizada pela cor e invisibilizada ou relegada à criminalidade?
Façamos breve levantamento: com quantos médicos negros você já se consultou? Quantos advogados negros você já contratou? Quantos arquitetos ou engenheiros negros você já viu à frente de obras aqui no DF? Quantas pessoas negras você vê nas sessões públicas dos tribunais superiores ou nas das casas legislativas? Quantas vezes você já desviou o caminho ao ver uma pessoa negra andando do outro lado da rua, por medo de ser assaltado? Ou, ainda, o que você sente quando lê as notícias sobre pessoas negras sendo violentadas e mortas?
O que precisa ser entendido e reconhecido é que o racismo no Brasil não é conjuntural, nem ocasional ou algo momentâneo. Silvio Almeida, Ph.D. do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade de São Paulo (USP), explica que o racismo no Brasil decorre da nossa estrutura social, que normaliza e estabelece padrões discriminatórios baseados na raça. Segundo ele, o conceito de raça para classificar seres humanos surgiu na modernidade, quando o homem passou a ser objeto de estudo da física e da biologia e, consequentemente, classificado a partir de características biológicas e geográficas.
Atualmente, apesar da comprovada inexistência de raças humanas (a raça humana é uma só), o conceito de raça ainda é categoria política usada para justificar desigualdades. Tais padrões racistas, fixados desde os primórdios da política escravocrata, levaram à naturalização de práticas discriminatórias em nossa sociedade, como o uso da violência contra pessoas negras.
A morte de pessoas negras não choca, pois o racismo constitui e molda as relações sociais, sendo normal e natural a sua prática. As pessoas acham natural que pessoas negras ganhem salários menores, que ocupem cargos e empregos de menor escalão, que cometam crimes e sofram violência ou sejam mortas.
O Atlas da Violência 2019, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), confirma a grande desigualdade racial nos indicadores de violência letal, mostrando que 75,5% das vítimas de homicídio no país são negras. Pessoas que, pelo simples fato de serem negras, são normalmente menosprezadas, violentadas e sufocadas até a morte pelo racismo de cada dia.
O racismo precisa acabar. Precisa deixar de sufocar pessoas pela cor. E os primeiros passos para efetivar a mudança e conseguir respirar o ar puro da igualdade garantida pela ordem jurídica brasileira são reconhecer que o racismo faz parte da estrutura social brasileira, refletir sobre atitudes que consideramos normais, assumir a responsabilidade e pôr mãos à obra pela transformação da sociedade.
*Membro da Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB/DF