PETRUS ELESBÃO
Petrus Elesbão é servidor do Senado Federal, historiador, pós-graduado em Economia e Ciência Política e presidente do Sindicato dos Servidores do Poder Legislativo Federal e do Tribunal de Contas da União (Sindilegis)
Em plena pandemia, com mais de 5,4 milhões de brasileiros infectados e 157 mil mortos, o Ministério da Economia gabava-se anteontem (27) de ter reduzido em 0,1% em 2020 a despesa com servidores públicos. A “estratégia”, batizada por Paulo Guedes de “reforma administrativa silenciosa”, é bastante simplória para um economista com ego de dimensões astronômicas como o do ministro: não repor servidores aposentados e deixar a inflação corroer o salário dos ativos. A cada 100 baixas, o governo repõe 26.
É, no mínimo, bastante ingênuo supor que a tecnologia é capaz de substituir o trabalho de 74 pessoas em todas as áreas em que o Estado brasileiro atua, mesmo as de natureza burocrática. E digo isso na condição de entusiasta da transformação digital. Exemplo claro é o INSS, que digitalizou 90% dos serviços prestados ao cidadão e, ainda assim, foi obrigado pela baixa reposição de servidores a convocar aposentados do órgão e militares da reserva, sem qualquer experiência, para tentar — sem sucesso até o momento — atender à alta demanda de pedidos represados, que em setembro ainda somava 1,8 milhão. Desse total, quase meio milhão diz respeito a solicitações de BPC por idosos e deficientes em situação de extrema pobreza, com renda familiar inferior a 1/4 do salário mínimo. Os mais vulneráveis são sempre os maiores prejudicados.
Contraditoriamente, ao lado da “economia” celebrada por Guedes, também foi veiculada a campanha pró-reforma administrativa da CNI intitulada “O peso do funcionalismo público no Brasil em comparação com outros países”, que, no estilo clássico das fake news, fez verdadeiro malabarismo com dados de diversas instituições para dar verniz à ficção de que o gasto com servidores no Brasil é desproporcional. Somam servidores civis e militares, ativos e aposentados, dos Três Poderes e esferas, para computar a folha do funcionalismo e comparam com números de outros países, alcançados com metodologia e base de cálculo diferentes. Importante destacar aqui que o gasto com aposentados o governo computa duas vezes: na conta da Previdência, onde fez uma dura reforma; e na folha de pagamento. Os militares só entram quando convém.
O depoimento do presidente da CNI denuncia a flagrante contradição: afirma que a PEC da reforma administrativa que o governo submeteu ao Congresso é o “caminho para reduzir e racionalizar o gasto público, a fim de melhorar a qualidade e a eficiência do atendimento prestado à população”, afirmando, em seguida, que a economia é necessária para o Estado responder aos “anseios da sociedade por serviços essenciais como saúde, educação”. Ora, existe educação sem professores e saúde sem médicos e enfermeiros? Tampouco existirá PEC alguma sem os servidores do Congresso que fazem as engrenagens do processo legislativo girarem.
Conforme registramos em inúmeras oportunidades, as despesas com servidores públicos federais no Brasil estão estabilizadas em percentual do PIB há mais de 20 anos e muito abaixo do limite permitido pela LRF. Nos estados e municípios o crescimento é reflexo da prestação direta de serviços à população, como educação, saúde e segurança — vitórias da Constituição de 88 que agora o povo chileno, depois de incendiar as ruas, tenta conquistar. O legado dos falsos profetas — termo que pego emprestado do brilhante Binyamin Appelbaum em seu livro A Hora dos economistas —, como Guedes e os “Chicago Boys” que implantaram o estado mínimo na Constituição chilena nascida da ditadura Pinochet, está ruindo. Em referendo realizado no domingo, uma esmagadora maioria (78,27%) decidiu sepultar a Carta que vigorou por 40 anos no Chile e realizar uma nova Constituinte. Vamos ignorar os sinais e seguir insistindo em um modelo de país que não deu certo e está sendo rejeitado em outras nações?
Ontem, 28 de outubro, foi Dia do Servidor. Tento manter o otimismo e acreditar que esta pandemia que está causando tanto sofrimento a todos nós, mas especialmente aos mais desprotegidos, derrubou os últimos pilares que ainda sustentavam o delírio liberal que movia o governo pelas mãos do ministro Paulo Guedes.
Quero acreditar que o valor do servidor público, neste momento agudo, ficou evidente para o cidadão que buscou socorro nas UPAS, que não foi saqueado graças à proteção policial, que viu os professores da rede pública lutando para superar a falta de estrutura e oferecer ensino on-line; para o trabalhador que recebeu o auxílio emergencial mais do que dobrado e aprovado rapidamente porque os servidores do Congresso conseguiram implementar, em sete dias, um sistema de deliberação remota eficiente que foi capa em jornais de todo o mundo. Mas, ao ouvir os ventos que sopram da Esplanada, não consigo deixar de pensar no romance A Hora da estrela, de Clarice Lispector, e em Macabéa, que ao sair da cartomante com a promessa de amor e prosperidade, morre atropelada, para só então, com seu corpo inerte estendido na rua, ser notada.
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