O novo deus não ri

Dentro e fora do Brasil, cresce tanto o número de igrejas evangélicas quanto a quantidade dos descrentes e sem religião. Aumentam, também, as tentativas de suicídio entre pré-adolescentes e adolescentes e o radicalismo entre grupos sociais. A democracia é cada vez mais questionada, e a paz mundial é, pouco a pouco, substituída por tensões crescentes de uma nova guerra fria entre Estados Unidos e China. A volatilidade dos mercados prenuncia um great reset, ou refundação global, e a pandemia acelera novos estilos de vida.

Por trás de todos esses fenômenos, há o surgimento de nova era tecnológica na humanidade. Muitas mudanças estão ocorrendo. Podemos resumi-las a um processo de digitalização profunda das relações sociais acompanhada pelo advento de inteligências artificiais. As pessoas não saem mais de frente do celular. E, ao contrário do que se poderia imaginar, em vez de enxergar mais as coisas como elas são porque têm mais informação disponível, os indivíduos, na verdade, vão ficando mais polarizados e cegos para o mundo, guiados por algoritmos viciantes e dominadores.

O capitalismo recebe novos adjetivos. Acionista ou de vigilância. De fato, coisas estranhas acontecem cada vez mais. O Estado, agora, compra e vende para o próprio Estado, com os bancos centrais adquirindo títulos dos tesouros nacionais em grande escala, fazendo com que muito dinheiro ilusório entre em circulação para sustentar dívidas virtualmente ilimitadas. Há menos empregos, mas todo mundo quer negociar na bolsa de Valores, em moedas e bonds. E, por seu lado, as redes sociais eletrônicas acompanham nosso dia a dia como um Big Brother que conhece todas as nossas vontades e preferências, sabendo cada passo que damos.

Vivemos um capitalismo imaterial. Parece uma contradição em termos, e talvez seja, pois o capital sempre foi, de alguma maneira, materializado em produtos físicos finais. Hoje, não é mais assim. São ações de mercado ou simplesmente pensamentos. Empresas de tecnologia adquirem bilhões por pura especulação piramidal. Elas fornecem serviço valioso, mas cujo valor se multiplica muito além do razoável apenas porque o dinheiro digital não tem limite. Elas não vendem carros ou massagens. Vendem a própria mente humana na formação de grandes bancos de dados utilizados na propaganda de quem vende carros ou massagens.

Os jovens metidos 24 horas nas redes e jogos eletrônicos não distinguem mais com clareza o real do imaginário. Chegam até mesmo a confundir a morte com um game over ao final de uma partida de computador, e o próprio corpo com um avatar que se restabelece como reserva de energia. Suicidam-se quase que como numa brincadeira sem grandes questões existenciais realmente profundas, enquanto outros tantos jovens entram em igrejas neopentecostais, em mercados financeiros ou em movimentos de fúria nas ruas e universidades. São novos traders, militantes radicais ou simplesmente fanáticos.

Com o antigo capitalismo, morreu, também, sua velha crítica, o marxismo. As classes operárias desaparecem frente a uma imensa massa desocupada. A mais valia que tanto explorava o trabalhador na visão comunista deu lugar à menos valia. A disparidade que Marx conceituou entre o valor produzido e a remuneração do empregado perdeu relevância. Os empregos estão sendo substituídos por máquinas. Os robôs não têm mais valia. Nem sequer recebem salários e não têm conflitos de classe com a burguesia.

A disparidade, agora, é entre o valor não produzido e o auxílio assistencial do governo. A exploração deu passagem à impotência humana, num tipo diferente de desalento. As pessoas que se alienavam dos bens que fabricavam, agora, estão grudadas em redes de frivolidades e propaganda de produtos que elas nunca poderão consumir.

Novo deus está surgindo. Ele facilita enormemente a vida e acaba com o tédio, criando bolhas de felicidades. Mas, também, superficializa as relações humanas. Aumenta a comunicação a distância e diminui a conversa com quem está bem ao lado. Amamos cada vez menos. Nossa compaixão é passageira. Conhecemos mais pessoas e desenvolvemos menos laços afetivos.

Temos cada vez mais dificuldade de nos concentrarmos, seduzidos por milhões de fotos, legendas e anúncios. Desfocados, acabamos nos deprimindo numa vida inútil, sem sentido, vivendo idiotizados numa sequência de boomerangs e de vídeos de 15 segundos, num looping medonho como a toca do coelho de Alice. O novo deus nos olha, e ele não ri.

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